Na Páscoa de há 2000 anos

Erguida numa colina sob o vale de Hinom, estou em crer que Jerusalém proporciona aos viajantes uma sensação que gostariam de experimentar quando visitam outras grandes cidades. Sendo um lugar que fervilha de uma intensa atividade económica, é, contudo, uma cidade hospitaleira e à parte não haver, porque estávamos na véspera da Páscoa, muitos sítios livres para dormir, poder-se-ia dizer que era um espaço que tinha uma boa organização, com todas as ruas a irem dar ao Monte do Templo que para os judeus era o lugar mais sagrado desde a antiguidade.

Naquele tempo, Jerusalém era uma cidade pejada de forasteiros interessados em arranjar uma maneira fácil de ganhar dinheiro. A minha companheira Marta e eu, seguindo a rota das tribos nómadas que deambulavam pelo deserto da Galileia, vínhamos na peugada de um Sacerdote judeu, filho de carpinteiro, nascido em Belém e de nome próprio Jesus, mais conhecido pelo Nazareno mas a quem chamavam de Messias todos os que acreditavam que Dele bastaria ouvirem uma palavra de esperança para se sentirem livres de todos os pecados.

Tinha vindo para Jerusalém acompanhado de uma numerosa comitiva e esperávamos poder falar-Lhe para Lhe dizer que largáramos tudo para segui-Lo. Recordo-me de que nesse dia a manhã estava cinzenta e escura, como no dia em que entrei em casa e comuniquei a Marta a decisão de passarmos a segui-Lo para sermos testemunha dos Seus milagres, já que para testemunhar a Fé das pessoas, nos locais por onde passava, bastava ver o número crescente de homens, mulheres e crianças que passaram a acompanhá-Lo, como se a presença delas pudesse ainda acrescentar algo ao bem que Ele praticava.

Tínhamos unicamente um animal de carga que ao fim de umas horas de marcha estava tão cansado como se nos alforges não transportasse apenas comida que nunca dava para mais de um dia. Fora comprado a um sarraceno com parte do escasso dinheiro que obtivéramos da venda da totalidade dos nossos pertences, que, tirando os utensílios da cozinha, se resumiam aos móveis que os pais de Marta nos deram para abençoar a nossa união e que juntos mal enchiam uma divisão da pequena casa emprestada onde morávamos.

Entrando em Jerusalém pela Porta Dourada, as pessoas avolumavam-se nas ruas de acesso ao mercado, de onde se ouviam apupos às colunas de legionários romanos que passavam, como se quisessem, no caso deles, avisar, quem andava às compras, que devia sair-lhes da frente, de maneira a eles abandonarem aquele local o mais rapidamente possível. De nós, as pessoas mal se desviavam e, vindo em maior número em sentido contrário ao nosso, dava a sensação de quererem vir todas ter connosco para perguntar qualquer coisa.

Junto das bancas de fruta, reconheci alguns dos companheiros de Jesus a quem chamavam Apóstolos, reunidos na expetativa de não serem reconhecidos pelas autoridades para não serem detidos com os arruaceiros que atiravam aos soldados os legumes que tinham à mão.

Depois de Marta e eu termos almoçado uma mão-cheia de passas, com côdea de pão duro e uma réstia de carne seca que, por mais que se mastigasse, não se desprendia dos dentes, encarreguei-a de desencantar um palheiro para guardarmos o burro, enquanto fui à procura de um lugar onde pudéssemos dormir quando a noite caísse, para não ficarmos à mercê dos assaltantes que proliferavam e não hesitariam em matar-nos para ficar com o burro mesmo sendo velho e praticamente não ter valor de mercado.

Constatei que por toda a parte por onde passava, havia mendigos deitados nos umbrais das portas ou a pedir esmola, antes de recolherem aos becos, de onde saíam na manhã do dia seguinte depois de passarem a noite em camas de palha improvisadas, mas onde não conseguiam pregar olho por causa dos cânticos durante a noite na sinagoga, a recitarem os Salmos, que lembravam aos residentes as horas em que deviam orar e aos visitantes, a todo o momento, que pisavam solo sagrado.

Havia mais desses recantos esconsos de onde facilmente um malfeitor nos podia saltar ao caminho, do que estalagens com quartos vagos onde pudessem dormir com algum conforto e estava quase a desistir de procurar, decidido a dormir numa colina em redor da cidade, quando, na ladeira que ia dar ao Pretório, que era o palácio onde residia o governador Pôncio Pilotos, me deparei com um vasto número de soldados armados de lanças compridas e em trajes de combate, que condicionava o acesso ao interior daquele edifício, aos sacerdotes do Templo que tinham livre-trânsito para tudo, aos chefes do povo e aos escribas, que eram necessários para tomar nota dos acontecimentos que estavam prestes a registar-se.

Defronte do terraço onde o governador costumava ir falar ao povo, aglomerava-se uma multidão à qual me juntei, curioso para saber que acontecimentos estavam a desenrolar-se. Foi quando Marta chegou, visivelmente cansada de ter corrido a zona à minha procura e decidiu também ficar porque ainda era cedo para irmos para qualquer lado.

Aproximando-se de um Centurião, Marta conseguiu ouvi-lo dizer, a respeito do homem que estava preso, que se tratava do tal Nazareno que andávamos a seguir e a quem, os que não apelidavam de Rei dos Judeus, chamavam de Herege. Foi-nos dito por uma mulher que Ele estava detido no interior do Pretório há horas suficientes para terem percebido que era incapaz de representar mal para alguém, pois confrontado com as acusações de que era alvo, facilmente teria entrado em contradição e em vez de continuar a dizer que era o Rei de todos os judeus, talvez apenas dissesse que afinal representava apenas aqueles que o apoiavam.

Foi-nos dito que passara a noite anterior numa masmorra do luxuoso palácio onde vivia Caifás, que era o Sumo-sacerdote, depois de inicialmente ter sido levado à presença de Anás que o deteve para interrogatório e, em face de não descobrir provas suficientes para o culpar, o remetera ao genro para juntos descobrirem uma forma irrefutável de incrimina-lo. Mais tarde, fora levado à presença de sacerdotes e fariseus no Sinédrio, que reforçaram a tese de que para um acusado de blasfémia somente seria adequado aplicar a pena de morte, mas que estando o condenado na jurisdição do governador só este a podia decretar, pelo que dali o levaram à sua presença.

Não sei o que se passou depois dentro do Pretório, mas algo deve ter corrido mal para, da mesma forma que Jesus nos convencera da nobreza do seu caráter, não os ter convencido a eles da sua origem divina.

Não bastara para demovê-los do intuito de crucifica-lo, o argumento apresentado por Pôncio Pilatos segundo o qual nem ele nem Herodes Antipas, que era presentemente Tetrarca da Galileia e estava de passagem pela cidade, o viam como a um insurreto ou elemento perturbador da ordem pública que merecesse ser tratado como um criminoso e terminar, segundo o que eles exigiam, executado nos preceitos da lei romana que era pregado numa cruz.

E foi perante uma multidão exaltada, que vi surgi-lo na frente de um corpo de legionários e oficiais para, de viva voz, vir em defesa de um Homem que embora considerasse inocente, sabia estar irremediavelmente perdido.

Temendo uma revolta popular, não querendo pôr contra si os judeus, o governador lá expôs os seus motivos e até se atreveu publicamente a discordar dos fariseus e dos sacerdotes que das leis de Deus afirmavam saber mais do que Aquele que se dizia seu filho. E por mais que argumentasse, mas parecia que uns e outros, secundados pelo povo em êxtase, estavam contra si. A quase totalidade dos judeus exigia a condenação à morte de Cristo, que era a forma de na Páscoa todos expiarem os seus pecados, nem que para isso contraíssem um tão grande como a falta de sensatez de que davam mostras. E bradando alto, invetivando Jesus que respondia com o silêncio às injúrias, tanto quando o acusavam de blasfémia, como quando lhe apontavam a dedo possuir um caráter violento que apelava à insurreição popular nos locais por onde passava.

Declinando a possibilidade de libertarem Cristo, resolveram dar o indulto, que por altura da Páscoa era concedido pelo governador, a um homem condenado por assassínio e escolheram soltar Barrabás que, além de ser um salteador incitava frequentemente os judeus à revolta contra o domínio do imperador romano. Para aplacar o ódio da multidão, não bastara ao governador tê-Lo mandado trazer com a prova do castigo infligido, que eram as marcas do chicote no corpo com que contava que as pessoas se comovessem.

Nervosa como nunca a vira, Marta abraçou-me a chorar. Chocada com o relato dos castigos que infligiam aos condenados deve ter-me imaginado no lugar Daquele homem de mãos vazias sem possuir bem algum, sabendo que, no meu caso, mais do que o pouco dinheiro que tínhamos, perder tudo significaria sobretudo perdê-la.

Jesus vestia uma túnica de cor púrpura, rasgada pela violência das chicotadas que lhe devem ter dado amarrado ao fuste de onde nem sempre o corpo do prisioneiro açoitado era retirado com vida pelos homens que se encarregavam de o maltratar. O tronco flagelado estava coberto de sangue e tinha a cara desfigurada em risco de, quem não soubesse quem Ele era, poder confundi-Lo com um meliante de delito comum. Na cabeça, haviam-Lhe enfiado uma enorme coroa de espinhos, metida com enorme força como se o tivessem feito à pressa e só por esse motivo não tivessem imediatamente percebido que Ele estava inocente daquilo de que vinha sendo acusado. Trouxera-o o Sumo-sacerdote, que trajava de negro a ensaiar o período de luto que se seguiria e falava com uma voz arrastada com as pálpebras semicerradas como se tentasse ver através do nevoeiro, embora pelo discurso que proferiu em seguida se percebesse que não enxergava a razão um palmo adiante do nariz. Desenrolando um papiro, de onde retirou os pressupostos para a detenção de Cristo, deu início à leitura dos mesmos, enunciando-os em voz alta como se quisesse convencer-se da sua autenticidade.

Entretanto, infiltrados no meio do povo, numerosos sacerdotes e fariseus espalhavam insídias e instigavam o povo a manifestar-se contra Cristo, coagindo a mudar de opinião, sob pena de serem conotados com Ele e acabarem também cruxificados, quaisquer pessoas que pensassem sequer em defendê-Lo.

Na confusão que se seguiu, quase não tive tempo de segurar Marta, para impedir que fosse arrastada pela multidão que se deslocou para a saída do edifício de onde vinha Jesus carregando às costas o peso de uma cruz que seria exagerado para Si, ainda que fosse repartido em doses iguais por todos os judeus que estavam presentes. Era de madeira e encimada por uma inscrição em latim que identificava o Rei dos Judeus, ali mandada pôr pelo próprio governador, mas que jesus, com menos pompa certamente teria preferido que ali dissesse estar um homem que só se tivesse sido amado pelo seu povo o ilibaria de ser responsável pelo mal que Lhe estava prestes a acontecer.

Perdemo-Lo rapidamente de vista e desatei a chorar no peito de Marta quando ela me disse que, momentos antes, novamente o tinha visto cair depois de se ter levantado a cambalear, como se apenas nas pernas Ele padecesse do cansaço que já se tinha alastrado ao corpo inteiro.

Sem vontade de seguir o cortejo que constituía uma espécie de romaria, fui com Marta à pressa recolher os haveres e o burro e abandonámos a cidade mesmo a tempo de evitar um forte temporal que tornou intransitáveis durante vários dias os caminhos de acesso à cidade, isolando-a por completo e só tornei a ouvir Dele, passadas umas semanas, quando retornámos a Belém e, no centro das atenções, estava um homem rodeado de anciãos a pregar como Cristo reclamando ter sido o seu dileto Apóstolo.

Falava com conhecimento de causa, fruto dos ensinamentos, do amor ao próximo, que era um dos principais fundamentos da Fé Cristã e embora não possuísse o carisma do Mestre, não fazia mal, pois se é verdade que, como diz o poeta, “um homem é tanto maior quanto o é o seu sonho”, no caso deste, que aspirava evangelizar e transformar o mundo num sítio melhor para viver, facilmente se conclui que dificilmente se poderia encontrar alguém que fosse mais íntegro e tivesse propósitos mais nobres.

Uma Páscoa feliz para todos!