“Não sei” – Dúvidas e Reflexões sobre Suicídios, Liberdades e Eutanásia.

Atualmente, em Portugal e no Mundo, coloca-se cada vez mais o tema da Eutanásia em evidência, tal como o do Suicídio assistido, sendo que é um dos temas de maior impacto na sociedade e, digo eu, nas pessoas…em cada uma delas.

Algumas pessoas defendem-na por questões pessoais (medo do seu próprio sofrimento ou do de quem amam), outras defendem a sua despenalização, com veemência, por questões de respeito pela Liberdade; pela liberdade alheia e pelo poder de decisão de cada um sobre a sua própria vida naquilo que lhe é, ou não, permitido.

Existem pessoas que, ao contrário, e muitas vezes pela sua religião, espiritualidade, filosofia de vida ou pensamento, não defendem a Eutanásia, nem o Suicídio assistido. Entendem pois que uma sociedade não deve poder decidir livremente sobre abreviar a vida de quem quer que seja, mesmo que seja a vontade do próprio; apenas pode, e deve, isso sim, encontrar formas de minorar a dor e oferecer o máximo de qualidade de vida a quem passa por situações limite, de degradação da vida humana, de dor, de sofrimento. Neste campo, o que está em causa é, não o reconhecimento da falha na medicina e na ciência, da derrota e da desistência da vida humana, mas antes o investimento que deve ser feito na minoração da dor e do sofrimento, da manutenção da dignidade humana e do máximo de qualidade de vida até ao limite da existência.

Evidentemente que é um tema de árdua leitura para quem é consciencioso e se questiona, seja qual for a sua posição pessoal…

Confesso que sou das que acredita na ciência, com uma fé inabalável na ciência e na humanidade, e em que precisamos de “canalizar” energias em prol da cura e da eliminação do sofrimento.
Mas também confesso que tenho uma crença inabalável pela Liberdade, pelo direito de cada pessoa a decidir sobre a sua própria vida…

Confesso que não consegui até hoje ter uma posição firme e convicta acerca disto…nunca consegui ter uma posição clara e inequívoca sobre estas coisas da vida e da morte, das liberdades, da ética, dos limites e da ciência, do que representa a dor e o sofrimento, como se mede, como se quantifica…Consigo claro está, para mim…Não consigo nunca, quando a minha escolha recai sob a decisão do Outro, nem me sinto no direito de por ele decidir…Assim sendo levanto apenas questões, dúvidas, interrogações…

Na verdade também nesta minha crónica de hoje, é isto que pretendo apenas: questionar e reflectir, com mente aberta, sobre este tema fraturante da sociedade…partilhar convosco, que têm a amabilidade de ler o que escrevo, de “mente aberta”, as minhas preocupações e reflexões sobre este tema tão sensível…

Com toda a humildade reconheço a minha própria limitação neste tema…acho até que admiro quem tem as suas posições claramente definidas, quem não tem dúvidas…Eu tenho tantas…E não as tenho somente a nível pessoal, mas, e sobretudo, a nível coletivo, sobre que caminhos são estes e onde nos levam…Um pouco como a questão levantada há uns anos, quando da clonagem da conhecida ovelha, e das questões éticas e das limitações que elas colocam à clonagem humana, por exemplo…

Neste caso, da Eutanásia e do Suicídio assistido, pesa o fato no entanto de que defendo a Liberdade, e, neste sentido, a liberdade de escolha de cada um, em qualquer circunstância, desde que não colida com a liberdade do Outro. No entanto sabemos que o homem, e a mulher, são sempre eles mesmos e a sua circunstância…Em situações de vida inesperadas, e marcantes, muitas vezes modificam-se as nossas crenças e convicções…a história está repleta de exemplos destes…

Pesa também o fato de que as desistências, sobretudo por parte da ciência e da razão, não me parecem solução…Se entendemos um “baixar de braços” pela emoção e sentimento, como é o caso dos que sofrem e de muitos que sofrem por ver quem amam em sofrimento, custa mais aceitar uma desistência por parte da Razão e da Ciência – esta deveria ser a última a “baixar os braços” e a dizer que não consegue…Deveria até à exaustão investir no progresso, em minorar a dor humana e o sofrimento em vida, em melhorar a qualidade de vida dos doentes, sem que isso implicasse a perda da vida humana…

Interrogo-me…não consigo evitar…sinto uma enorme ambivalência entre o que é ou não aceitável…não pela moral castradora, mas pela ética humana…

Que respostas podemos e devemos dar a quem se entrega aos cuidados da medicina, da ciência ou de outras terapêuticas? Qual o limite da dor humana? Qual o limite da Ética?…

Tantas e tantas questões que se colocam…Uma enorme impotência para ajudar o Outro, que nos dilacera por dentro…

Como se o assunto não fosse suficientemente complexo e de “cortar a respiração”, detenho-me ainda a pensar nas contradições que aqui estão em causa…no precedente que pode ser aberto…nos limites…Também na valorização da dor física, que se vê e quase se sente, e na desvalorização de certa forma da dor mental por si só…Ou será ao contrário?…Tudo isto por comparação…

Olhando para a Lei de Saúde Mental, em vigor desde 1998 e com as suas mais recentes alterações, damos conta de que a Sociedade interfere com a vida dos doentes psiquiátricos, mesmo quando estão lúcidos e sem atividade delirante ou alucinatória, e interfere com as suas escolhas no que ao suicídio e à medicação diz respeito…

Perpetuam-se aliás alguns sofrimentos de doentes psiquiátricos em termos da sua vida e da sua escolha, por não permitirmos que os próprios cometam suicídio ou se coloquem gravemente em risco. Fazemos isto ao internar compulsivamente os que procuram ou tentaram suicidar-se, e mais, achamos que isto está correcto. Correcto apesar da dor brutal, psíquica e que não se vê, destes doentes.

Doentes que em alguns casos passam vidas “desgraçadas”, de imensa dor, cuja medicação e psicoterapia não resolve…melhora, sim…mas muitas vezes, infelizmente, não resolve…não da forma que desejamos. O sofrimento é brutal e devastador…para o próprio e para quem o ama…Continuamos a trabalhar no sentido de apaziguar a dor e o sofrimento, mas continuamos a não permitir que estes retirem as suas próprias vidas, em termos legais. Tal como não permitimos que os idosos com demência se suicidem…Vamos, isso sim, tentando trabalhar no sentido de atenuar a dor, e melhorar a qualidade de vida, tanto quanto possível… Fazemos o mesmo relativamente aos deficientes profundos, por vezes em enorme sofrimento – tentamos melhorar condições de vida, incluir socialmente, minorar a dor, perspetivar curas…O idealismo assim nos faz andar…a humanidade em prol de si mesma…a ciência ao serviço da vida…

Os anos em que trabalhei em Hospital psiquiátrico, e na Unidade de Prevenção do Suicídio, vi vidas dolorosamente sentidas e vivenciadas…vidas de uma dor psíquica intolerável que não era resolvida pelos moduladores de humor em muitos casos, nem pelos neurolépticos, nem pelos anti-depressivos…muitas vezes não era resolvida por coisa alguma…No entanto sempre tentámos dar o nosso melhor em prol destas vidas…Medicação, psicoterapia, outras terapêuticas…mas não compactuámos com a desistência. Nunca disse a um doente que não valia a pena viver nesse sofrimento. Mas também nunca escondi que o suicídio era um caminho que existia sim, que era real. Mas na terapia fala-se de vida, de novas escolhas, de caminhos…e com os anos, muitas vezes, o suicídio vai-se tornando cada vez uma opção menos válida…e ainda bem que assim é. Era para isso que se trabalha nesta Unidade. Não seria isto o que era suposto sempre? Ajudar a ultrapassar a dor em vida?…Interrogo-me…

Por ventura a dor mental é menor ou menos válida do que a física?…Porquê?…Porque não se vê?…
Será a desistência o melhor recurso para a vida humana e para a própria ciência?…Tenho imensas dúvidas e questões…Nada sei…mesmo.

No desespero e na desesperança horroriza-se o próprio, e os que o amam…perpetuam-se em muitos casos existências repletas de dor, fancas limitações, hospitalizações e dependências…Mas isto é válido infelizmente para muitas existências…até de crianças lamentavelmente…Qual o limite então? Qual o nosso julgamento em sociedade?…É verdade que todos ficamos feridos de morte com esta dor, nossa, alheia, dos nossos…Mas qual o limite que existe para a humanidade e para a própria ciência?…Não é simples…

É a desesperança e portanto a emoção que deve decidir? É a ausência de cura ou irreversibilidade da doença?…É o grau de dor e limitação?…É a vontade da pessoa, só por si?…É o limite da ciência no momento?…Quais são os casos? Quais são as linhas que nos guiam?…

As famílias já são chamadas a decidir, como se sabe, em situações de “desligar a máquina”…Árduo, mas é feito. Isto faz-se nem sempre com o consentimento do próprio doente…Faz-se por questões práticas e materiais basicamente. Desiste-se da vida do Outro porque se acredita que ela está na verdade já terminada, apenas se perpetua pela ciência…pela “máquina”…

Continuo sem perceber como é possível não haver dúvidas ou questões sobre estas temáticas…

Vi pessoas que apesar do seu sofrimento quiseram viver sempre…até que seja a sua hora.

Vi pessoas que queriam a morte, e ao fim de algum tempo, meses ou anos de terapia, agradeceram pela ajuda prestada em prol da sua vida…

Vi comas “irreversíveis” que deixaram de o ser ao fim de 15 anos…quando já niguém o esperava…Vidas recuperadas…Lesões antes incuráveis, por vezes passam a ser reversíveis…

A ciência está sempre em evolução. Sempre.

É com uma dor imensa na alma que escrevo sobre estas coisas…Como dói ver ao pé de nós o sofrimento humano…Como dói conter as lágrimas para dar uma palavra de esperança quando ela é ténue e quase vazia de fé…

Como é árdua a tarefa de conviver com a dor, nossa ou de quem está ao nosso lado…

Mas decidir pela desistência da vida, sem mais, é, confesso, para mim, alguns anos ligada à Prevenção do Suicídio e às enfermarias psiquiátricas, outros tantos a acompanhar idosos e fases terminais, ainda outros tantos a acompanhar em neuropsicologia a evolução constante das neurociências e as dores humanas, uma matéria muito sensível, muito complicada, que me traz sérias e duras reflexões…

Como se pode abreviar a vida de uns e condenar à vida sofrida outros?…

E se por acaso a sociedade permitir que a uns seja dada essa escolha, como justificar que a outros seja negada esta possibilidade?…

Mas se permitir que a todos seja dada essa possibilidade o que estaremos a fazer com a vida e com a sociedade humana?…

Porque é que uns podem ser, nesse caso, condenados a uma vida de sofrimento – doentes mentais, deficientes psicomotores, deficientes motores com graves complicações, etc. – e outros não?…

Por ventura decidimos qual a dor que é mais válida? Qual a vida ou a morte que é mais válida?…
Quem tem direito a morrer porque sofre fisicamente sem esperança de cura e quem é condenado a viver uma vida de sofrimento, até mesmo a ter internamentos compulsivos e tratamentos, porque quis morrer?…

Como podemos obrigar pessoas e crianças a tratamentos violentos, em muitos casos, sustentando que tem de ser assim em prol da vida, e noutros casos permitir que se movam recursos para colocar fim à vida?…

E o que dizer dos pseudo-humanistas que repentinamente conseguem alegar que a eutanásia poupa recursos ao Estado?…Como se fosse isso o importante…Esta argumentação não aceito…

E o que dizer dos que lutaram sempre pela liberdade e que agora não conseguem decidir que seja dada essa liberdade a quem escolhe morrer?…

Não consigo ter uma opinião formada…só questões… e mais questões se levantam…e o tempo conta para quem sofre…

O que está em questão para mim são essencialmente três coisas: Liberdade (1), Ética (2), Igualdade de Direitos (3).
O que eu julgo saber:
1. Não tenho o direito a decidir pelo Outro. O Outro não tem o direito a decidir por mim. Liberdade.
2. Tenho de respeitar os valores éticos mais elevados em prol da vida humana e estabelecer claramente os limites éticos à ciência e à própria liberdade de decisão do doente e dos profissionais de saúde, entre outras coisas mais. Ética.
3. É preciso definir limites e perceber como podemos avaliar e medir as dores de cada um, (se é que isto pode ser feito…); pensar naquilo que definimos por cura e irreversibilidade da doença, e naquilo que consideramos válido para uns, e que seguramente teremos de considerar válido para outros…
– Assim sendo, ainda que para mim, pessoalmente, acredite que o sofrimento faz parte do processo da nossa existência e que não é apaziguado pela antecipação do fim da mesma (ou seja, acredito em algo mais), não consigo, ou não quero, decidir pelo Outro. Não consigo interferir com a sua liberdade de escolha. Interrogo-me em termos de Sociedade, qual o caminho?…E é esta partilha que aqui vos deixo…Tão somente isso..Sem juízos de valor, com tolerância e respeito por quem pensa diferente, por quem sabe, e por todas e todos os que como eu, não conseguem decidir-se…