Não sei por que carga de água …

… é que hoje de manhã tinha água no carro, se quando ontem à noite fui pela quarta vez no espaço de uma hora espreitar a janela da vizinha da frente pela do meu quarto às escuras, a rua estava seca e só atribuí à circunstância de não haver gente a passear cãezinhos de trela o facto de estarem a passar, àquela mesmíssima hora em todos os canais menos nos temáticos, os resumos alargados de todas as partidas da liga europeia de futebol onde os clubes portugueses competem entre si como se a separá-los e ao país que representam, mais do que um sotaque diferente houvesse símbolos de nacionalidade como um idioma, um hino ou até uma bandeira.

No final de uma semana em que o futebol andou na ordem do dia, enquanto na boca de quase todos os meus amigos andavam os termos a ele ligados como se fizessem parte da linguagem aprendida na escola, na minha, de língua colada ao céu-da-boca formando uma barreira quando vi o estado em que ficou o carro, senti avolumar-se a raiva e só a custo contive os impropérios que não soltei com receio de escutar-me aquela vizinha jeitosa que haveria de corar do alto mas não tanto como eu quando passo perto dela num carro tão velho que envergonha os modelos mais recentes da sua marca.

Já resolvido a ir para o trabalho de carro, pus os pés ao caminho e comecei a olhar em todas as direções à procura de pessoas a quem tivesse acontecido a mesma contrariedade, mas sem parecerem tão zangadas que ao verem-me aproximar com ar suspeito pensassem que num tão curto espaço de tempo à primeira contrariedade do dia iam já somar a segunda.

Digo isto porque gosto de usar a barba rala como se tivesse sido mal acabada de fazer, e isso poder causar-me problemas com a aparência, mas daí a confundirem-me com um malfeitor vai uma distância ainda maior do que aquela a que eu estava, no momento em que meti a chave à porta, de ver os estofos e os tapetes do carro encharcados como se a nuvem, agora esbranquiçada, que pairava sobre a minha cabeça tivesse escolhido aquele sítio para despejar toda a água que dela tinha feito a mais negra de entre todas as que se viam no céu.

Se o que me aconteceu fosse consequência direta dos meus atos, em lugar de ter chovido no carro dessas pessoas que nem sequer conhecia, não haveria motivos para não me ter chovido dentro do quarto ou na cozinha, muito menos para os três dias de sol na semana em que me desculpei com o excesso de trabalho no escritório para fingir que saía tão tarde que não podia ir ter com a minha namorada à noite.

Fosse como fosse, mesmo que viesse um matemático explicar-me com uma fórmula que era esse o castigo, embora tardio, para essa minha falha, eu continuaria sem perceber por que carga de água me tinha aquela água toda inundado o carro se o automóvel nem sequer era meu e estando no nome dela ela é que tinha sido, feitas as contas, prejudicada duas vezes.