No fundo dos teus olhos de água

Duas tochas acesas no breu da noite, seus olhos incandescentes guiaram-me pelas entranhas do quarto às escuras, até me sentar à sua beira.

Avistei-a da entrada, pela fresta da porta que estava entreaberta, à minha espera já sentada na cama, que era pequena como um divã, com a cabeça baixa como quando lê um livro do seu autor preferido ou simplesmente folheia as derradeiras páginas do último capítulo para ver como ele vai acabar, enquanto repousava de pernas estendidas sobre o edredom de penas ondulado como a água corrente no leito de um rio.

Penso que devemos casar este ano, talvez na data que assinale o centenário de um acontecimento que mereça ser recordado, para ver se somos contagiados pela sorte e durante muito tempo nos continuem celebrar.

Não fosse isso e pensaria seriamente em mudar de cidade ou de país, porque começa a ser intolerável a cara que os meus familiares e amigos fazem à resposta amarga que eu lhes dou quando tento explicar por que razão continuo solteiro no dia em que estou à beira de completar cinquenta primaveras. Meio século de vida e, por uma razão ou por outra, todas as minhas anteriores relações terminaram abrupta e precocemente, como uma taça de gelado derretido ao sol. Desta vez, porém e ao invés do passado, o namoro não sucumbiu aos ciúmes porque tendemos a não repetir os erros cometidos no passado, daí que ele prometa prolongar-se muito além do tempo necessário para toda a gente perceber que está na presença de um amor que é profundamente sincero.

Desde que pela primeira vez nos vimos, o nosso entendimento foi total. Inicialmente, ao nível da linguagem corporal. Eu percebi que ela corou e ficou agitada na cadeira quando, no barzinho em que estávamos a almoçar, eu pedi ao empregado que lhe servisse um gin tónico por minha conta e ela deve ter deduzido pela maneira como passei a fixá-la que o meu interesse pela cor dos seus olhos nada tinha a ver com a dúvida de saber a marca dos produtos de maquilhagem que estaria a usar.

Aos primeiros olhares que trocámos, partiu de mim um aceno e, no final, por trás do convite que fiz para tomarmos café à chegada no dia seguinte, ela percebeu logo que estava o desejo de levá-la a jantar e depois ao cinema, e ainda por cima, sendo uma última sessão, a intenção de acompanhá-la a casa de carro para não ser, a horas tão tardias, surpreendida na rua por algum larápio. Foi um entendimento verbal, mas entendemo-nos também ao nível do que eu vestia.

Cuidadoso com a aparência, escolhia sempre uma indumentária a condizer quando saíamos juntos, o que era do seu agrado e somava pontos a meu favor. Apreciava tanto o meu estilo que elogiava frequentemente o meu bom gosto, o que fazia com que o nosso entendimento funcionasse tão bem que mal precisávamos de abrir a boca para comunicar, como se cada um soubesse antecipadamente o que o parceiro ia dizer e qual a melhor forma de lhe agradar.

E tudo tomou esta forma desde o começo, ou seja, desde os primeiros tempos em que ela foi trabalhar como lojista no centro comercial em Lisboa onde eu era o homem da segurança responsável por vigiar os corredores desde a zona da entrada até ao desvio que dava acesso à zona das casas-de-banho.

Cruzámo-nos, como disse, pela primeira vez a caminho do bar israelita onde íamos almoçar, onde eu comia como habitualmente uma baguete de carnes frias com o pão típico que eles lá têm. Ela, por seu turno, atirou-se de unhas e dentes a um daqueles menus que incluem refrigerante de lata e um pacote gigante de batatas fritas embebidas em óleo que a ela, por ser naquela altura de fraca constituição física, não deviam encher as ancas de celulite.

Sentei-me à vista dela, numa mesa de quatro onde cabiam comigo três pessoas mais gordas do que eu porque estava vazia. Por causa do frio que era próprio daquela altura do ano, eu usava apertado até às orelhas um casaco de lã comprado numa festividade anual de uma localidade cujo nome não recordava. Contudo, tão certo era ela ser distante como eu ir à janela do meu quarto ou à varanda da sala e não conseguir avistar de lá o rebanho a cujas ovelhas ela foi arrancada.

Comi pausadamente de olhos postos no prato dela, de onde ia levando os palitos de batata frita à boca. Adorava o espetáculo de vê-la comer, e por causa dele devo ter demorado horas a mastigar os pedaços de pão que pareciam multiplicar-se na minha boca, como se fossem garfadas de uma carne rija que tivesse dificuldade em engolir, mais satisfeito pelo programa que me era dado ver naquele momento do que pelos tantos a que assisto enquanto janto à noite em casa com a pequena televisão da cozinha acesa a fazer-me companhia.

Dava ares de uma grande dama, pela postura à mesa e modo como segurava nos talheres de inox que pediu para substituir os de plástico que vinham numa saqueta, ainda com as pontas dos dedos manchadas da nicotina do único cigarro que fumava a meio da manhã para descontrair dos nervos, finda a pausa de dez minutos durante a qual podia ser uma peça de fruta o que comia mas o que digeria eram os piropos dos clientes que acabavam por deixá-la bem-disposta.

Na convicção de que caso o destino a tivesse posto no meu caminho por engano eu saberia logo que tivesse recusado o convite para tomarmos café pontualmente às nove no quiosque defronte do bar israelita que abria mais tarde, pus-me logo a imaginar que estávamos destinados a compartilhar o amor das nossas vidas, tão imenso como o brilho que desponta dos seus olhos, ao qual, quem se expõe, corre o risco de por ela se apaixonar rapidamente.

Ao sentir-me aproximar com passada curta, dobrou-se sobre o meu lado da cama e puxou para baixo o lençol de cima, que tinha dobrada uma aba com pequeninas flores bordadas, destapando o que estava sobre o colchão, ainda morno como se o tivesse acabado de retirar do estendal ao sol. Sentei-me à beira dela, tão perto que facilmente podia tê-la puxado por um braço e enchido de beijos que resvalariam para o ato sexual. Olhei para ela embevecido, na esperança de que, mesmo sem óculos e às escuras, virando-se na minha direção, ela não pudesse deixar de sentir o mesmo por mim.

Quando acendeu a luz, saltou à vista que estava nua, donde reparei que, à vista das dela, as minhas pernas eram escanzeladas, como as de um rapaz inexperiente que era incapaz de fazê-las parar de tremer se estivesse parado na sua presença.

Depois de uma noite lancinante, ainda de olhos fechados devo ter sonhado acordado. Estava com ela de mãos dadas, num passeio pedestre ao ar livre, tendo como pano de fundo o mar, que é afinal da cor dos seus imensos olhos de água.