No Natal a ver estrelas

Correndo ao meu encontro, veio de braços abertos e, estreitando-me os braços, abraçou-me pela cintura, mas a meu ver, nem com eles abertos eu deixaria de caber no seu abraço que, no mínimo, era do tamanho do mundo.

Aos oito anos e quatro meses de vida, Blanche era esperta o bastante para ter descoberto a inexistência do Pai Natal muito antes de ter-me ouvido lamentar junto da mãe que o orçamento desse ano não desse para lhe comprar uma simples boneca e muito menos a casa das princesas, a qual sem nenhuma para lá meter dentro, seria lastimoso ver que estava às moscas.

Quando chegava do trabalho, qual dançarina, era vê-la ao meu redor ensaiar passitos de dança, como se da música que emanava o pequeno transístor em FM que havia na cozinha, sobressaísse o compasso das peças que estava acostumada a dançar nas aulas de ballet clássico que frequentava graciosamente, a título do meu avô ter sido um dos elementos fundadores da centenária Sociedade Musical.

Como sempre gostei de música, não perdia a oportunidade de ir vê-la e nessa altura pensava no que teria inspirado Beethoven a compor as suas sonatas, enquanto assistia às aulas dadas pela senhora Odille, que era também alemã mas da parte oriental e nos cumprimentava de nariz empinado como se tivesse nascido na cidade dele.

Eram os quarenta e cinco minutos mais bem passados duas vezes por semana, às terças e quintas ao cair da tarde, em que aproveitava para ler o quinto e derradeiro fascículo de Guerra e Paz, que à hora de almoço, mal abria tinha logo de fechar, assim que algum dos meus colegas de profissão pedia para resumidamente lhe contar as desventuras das cinco principais famílias aristocráticas intervenientes, que vão até às invasões napoleónicas e falasse com precisão dos milhares de nobres da Rússia czarista, tudo a começar praticamente logo no primeiro capítulo.

Voltávamos depois a casa e, consoante o adiantamento do jantar, sentávamo-nos a brincar na varanda até que, à força de ser arrastada para o banho, era chegado o momento em que ia relaxar e retemperar energias para no dia seguinte começar tudo de novo.

Resultara de ter de feições muito morenas, o facto de ao princípio eu ter pensado que ela pudesse não ser minha filha. À memória da minha mulher, que era de ascendência andaluza, por essa altura assomou o episódio da tia que sobreviveu ao neto ter nascido mulato de pai e mãe que eram louros.

Não me espantou de sobremaneira a coincidência de ter-se repetido na mesma família um fenómeno que se afigurava tão improvável como a eventualidade eu vir a duvidar dela. Naquela região de Espanha, devido às altas temperaturas tanto de dia como de noite, era menos certo que a vida decorresse normalmente do que nas províncias a norte, onde, por causa do frio, o pior que podia suceder era as crianças nascerem com os dedos de pés e mãos engelhados.

Descobri-lhe no dia em que completou três anos, uma particularidade. Estava a acentuar-se em Blanche a passagem da cor dos olhos de cinza para azul, mais rapidamente do que se tivesse sido essa a minha vontade expressa. Do cabelo, que usava cortado à maneira de malga de barro enfiada na cabeça, não se podia afirmar o mesmo. Escuro como breu, da raiz às pontas era como se levasse uma laca que lhe dava brilho e ao meu, se pudesse, fosse capaz de restituir o fulgor perdido ao longo das décadas.

Mas seria injusto achá-la unicamente bonita. Dotada de inteligência e coragem, mesmo em criança, cada obstáculo com que se deparava servia para me mostrar que estava à altura de superá-lo. Ávida do conhecimento, era uma esponja que absorvia toda a informação ao seu redor e como era eternamente ciosa de saber com que linhas se cosia, de antenas sempre ligadas à escuta, captava todos os sinais e mais coisas, entre o que havia entre o céu e a terra, do que podia supor a nossa vã imaginação.

Nasceu no dia de um ano que começou bem com a notícia de que na primavera ia mudar de emprego, de um menos bem pago para outro mas mais perto de casa. Fazia uma tarefa rotineira que me provocava artroses nas mãos, numa fábrica de ótica, onde não era por embalar diariamente dúzias de caixas de lentes de ver ao perto, que não me viam embora lá fosse todos os dias. Como numa linha de montagem, eramos tantos que facilmente não dariam pela nossa falta sem a ajuda de uma máquina de ponto que nos atribuía um número e registava a nossa entrada.

Embora a ausência de um funcionário representasse para o patrão, um encargo menor com salários ao fim do mês, quem mais depressa daria pela minha falta se resolvesse ficar em casa a descansar, era o meu camarada de bancada, para quem eu, se representasse um número, seria certamente na ordem das dezenas de milhar, proporcional à importância que tinha para ele o tempo que passávamos a conversar, fosse à segunda-feira, discorrendo dos assuntos do futebol, fosse nos restantes dias abordando os temas quentes da semana.

Blanche nascera cheiinha, com cinquenta e dois centímetros de comprimento, um pouco antes do meio-dia e quando a vi, devo ter pressentido que me chamava pelo nome, pois deu-me de imediato uma imensa vontade de abraçá-la a chorar.

Lá em casa, não tínhamos outra cama, além daquela de cabeceira de letão amarelo em que a minha mulher, mal refeita do esforço do parto, estava deitada passado uma hora, segurando-a nos braços com a mesma firmeza com que me seguraria, se pudesse, para evitar ver-me estatelar no chão, caindo tonto de emoção.

Vivíamos do meu parco salário, já que a minha mulher continuava desempregada, no quarto alugado de uma casa num prédio decrépito e sem outro conforto que não fosse o proporcionado pelo escasso mobiliário que compunha o enxoval de ambos, do qual constara uma televisão a cores de trinta e nove polegadas de que tivéramos de nos desfazer por se ter avariado em menos de quinze dias.

A ladear a cama, tínhamos duas mesinhas de cabeceira que estreitavam ainda mais o quarto e onde ela guardava as meias e cuecas que não punha nas gavetas da cómoda para não roubarem espaço aos lençóis e à roupa de inverno, que não cabia no roupeiro de duas portas, o qual não abria de par em par porque uma delas estava perra e em cujo interior, em vez de estarem as saias e os casacos a mais, era o espaço a menos que marcava presença.

Veio ao mundo frágil, num ambiente citadino pobre, à mercê do desamparo em que ficaria se um de nós sucumbisse a qualquer fatalidade, mas tratámos de aquecê-la muito bem e assim ficou, ao nosso colo até virem visitá-la três amigos meus de longa data com presentes que ainda mais enalteciam o esforço de terem percorrido duzentos quilómetros numa desconfortável carrinha de dois lugares e caixa fechada atrás.

Não foi acolhida em berço de ouro, nem, aludindo à sua beleza que se propagou, acorreram a vê-la magotes de pessoas. Ao cabo de três curtos meses, foi dali diretamente para uma creche, porque cessou o subsídio de maternidade e a minha mulher para ajudar no o14rçamento lá conseguiu um trabalho nas limpezas, contribuindo para o seu sustento.

Contudo, Blanche cresceu evidenciando boa saúde e consagrei-lhe todo o amor que pude, mesmo ficando por explicar a inexistência de parecenças físicas com ela. Assim como a origem da estrela, que no dia do nascimento surgiu sobre a nossa casa, e por mais brilhante que fosse, em nenhum momento nos faria desviar um milímetro da atenção que dávamos à bebé.

A todos um feliz Natal e boas leituras.