No tempo em que íamos para o Algarve. Os quatro. – João Nogueira

Um Golf preto, uma dúzia de panados, uma gaipa de uvas, gomos de tangerina. E lá íamos nós. Os quatro. Que todos somados dava um.

 Sou saudade. A toda a hora. É defeito, mas sou escravo do ontem. Lamento. Por mim.

 Ontem, éramos quatro a ir para o Algarve. Dois grandes e dois pequenos. Tudo como deve ser. Ao volante, o pai. Ao lado, a mãe. Atrás, nós. As crianças. Tudo como deve ser, portanto.

 O Algarve, naquele tempo, começava no Porto. No Golf preto. Mil e trezentos de cilindrada, não sei quantos cavalos e um tejadilho. Lá dentro, cassetes. Que só ouvíamos naquele dia. Naquela viagem. Os Bee Gees, os Pink Floyd e os Dire Straits cantavam só para nós, enquanto íamos saltando de ponto cardeal. Sem pressa. A cem. Na faixa da direita. Ou a meio das faixas. A calcar a linha contínua. É que o meu pai tinha um tique esquisito. O de dar beijinhos à minha mãe. Ainda hoje o tem.

 A estrada era preta. Era noite. Para nós, não. Era a cor que cada um queria que fosse. A minha irmã, por exemplo, dizia que era verde-limão. O meu pai discordava. Dizia que só via uma cor. O azul e branco. A minha mãe, desconheço. Começava a dormir antes do meu pai meter a primeira. Abria um bocadinho a boca antes de ele meter a terceira. Abria muito a boca logo a seguir à quinta. E assim ficava. Sossegadinha.

Para mim, daltónico, a estrada não era nem azul nem verde. Era uma fisga. Que nos lançava para outro mundo. Um melhor.

 Ontem, íamos os quatro para o Algarve. Não em férias. Isso fazíamos em Miramar, ali ao pé do Senhor da Pedra. Um bocado de sol, outro de nortada, quilos de Nívea nas bochechas, um castelo torto na areia e um perna-de-pau no fim. Para o Algarve, íamos como quem vai para o Natal. Um sítio qualquer, onde sabemos que vamos ficar por lá. De onde nunca vamos sair. Mesmo quando estamos longe. Mesmo quando nunca mais lá voltamos. Há sítios assim. Que são casa. Sem o ser. Casa não é um sítio. Não é um telhado. Não são mosaicos. É uma coisa sem nome, que não paga imposto e onde fomos mais felizes do que o costume. Ou ainda mais.

 O caminho é para a frente. Mas a minha rota escrevo-a eu. Eu é que mando. Sou zero a Artes, mas eu é que desenho o mapa. Até o ilustro, se me apetecer. Gosto de ir lá atrás, às vezes. À minha pré-história. Quando viviam dinossauros em mim. Éramos os quatro. Só! E não se falava mais nisso. E assim é que estava bem.

 O Algarve era inocência. Aquela que só é possível ter quando se é pequeno. Era sol sem nortada. Era cheiro a não sei o quê. Mas bom! Era salitre em cada milímetro de corpo. Era areia entranhada. Era o meu pai a fazer de Cubillas, a chutar de trivela uma bola de vólei antiga. Era eu, de calção-cueca,  a voar para a defender. O que era raro! Era a minha irmã com bóias e com creme na ponta do nariz redondinho. Era a minha mãe, com berros mudos, a dizer que se estava a afogar, quando a água lhe chegava aos tornozelos.

O Algarve era reencontro. De caras. Que só víamos ali. Caras que iam crescendo. Não as vias um ano e ganhavam logo barba. Não as vias no ano a seguir e no outro já tinham filhos. O Algarve era o João. Era o João, caramba! Do sul. Rapaz para quase dois metros de altura. Rapaz para quase dez metros de coração. Eu e ele, dois latinos atrás de loiras marmanjonas. Das que nos passavam cartão. O que era raro!

 O João é como a história da casa. Não está aqui nem eu estou onde ele está. Mas estamos um no outro. Sempre que quero estar com ele, viajo. Na máquina do tempo que todos temos cá dentro.  E isso é ser amigo. E amigos só podemos ter um ou outro. Mais não.

 Hoje, já não vamos para o Algarve. Os quatro. Agora somos seis. Aliás, agora somos dois mais dois mais dois. E cada um de nós quer procurar o Algarve noutros sítios. Com quem apareceu, entretanto. Faz sentido. O mundo pula. Às vezes não avança. Mas pula. E pincha! E esperneia!

 Somos sempre presente. Nunca outra coisa. O passado foi um presente que já passou. O futuro é um exercício de criatividade. Mais nada. É como nós.

 Vejo-nos com todas as caras que tivemos. As que já não temos. Crescemos. O tempo passa. Nós também. O nosso Algarve já não existe. Acabou. Mas a nossa casa continua a ser lá. Basta fechar os olhos e estamos lá todos outra vez. Com as caras que tínhamos. Com os sorrisos que tínhamos. Com os sonhos que tínhamos. Os quatro!

 A vida corre muito. Corre como uma desalmada. Transpira que se farta. É uma maratona. Mas é, sobretudo, uma corrida de cem metros, que acaba mal começa. Mas há coisas que permanecem. Que ficam sempre no mesmo sítio. Que não têm tempo. Que não ganham cabelos brancos nem riscos na testa. Basta fechar os olhos. Ao volante, o pai. Ao lado, a mãe. Atrás, nós. As crianças. Tudo como deve ser. No Golf preto, a cantar o Daddy Cool e a insultar o Variações sempre que ele dizia, muito afinado, que a mãe dele era a melhor.

Não era.

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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