No trilho do lobo ibérico – Francisco Duarte

Tenho que admitir que tenho uma paixão incomensurável por lobos. E raposas, também raposas, mas essas não são tão importantes para este artigo. O facto é que desde de pequeno que estes grandes e belos predadores me fascinam. Como qualquer criança da minha geração (e anteriores, pelo menos), cresci com histórias em que estes animais eram vilões terríveis que vinham de terras distantes ou das florestas mais negras para atacar algum herói inocente ou que já não conseguia suportar mais inimigos. E lá vinham os seres demoníacos dos cantos mais sinistros da mente para trazer o inferno sobre as suas cabeças.

Há dois fatores que já em tão tenra idade me incomodavam nestes contos. Primeiro: os heróis que os lobos atacavam nunca me deixavam assim tão preocupado. Nunca gostei de heróis totalmente bons e cheios de qualidades. Talvez eu fosse uma criança estranha, mas estava sempre à espera que fizessem alguma coisa menos nobre, algo mais “humano”. Se os lobos os apanhavam, como poderia suceder com o capuchinho vermelho, bem… boa viagem, nunca foste muito interessante para começar!

Segundo: nunca percebi porque deveria ter medo de lobos. Mesmo quando surgiam a mostrar os dentes, ou a rondar os protagonistas, lembravam-me sempre a mesma coisa – cães. E cães especialmente bonitos, já agora. Sempre adorei cães, ainda antes de saber falar, pelo que me dizem. Ainda hoje sinto uma grande empatia por estes animais, e normalmente dou-me bem com eles. Assim sendo, nunca percebi porque haveria de temer o que era, basicamente, um cão selvagem. Evidentemente que atualmente sei a questão é um pouco mais complexa do que eu pensava enquanto criança. Não se brinca com animais selvagens. São perigosos por seu próprio direito. Mas também não são monstros.

Limitam-se a ser o que são. Os lobos são caçadores, os maiores entre os canídeos que ainda existem (houve deles bem maiores no passado, e alguns bastante espetaculares), e caçam sobretudo ungulados de grande porte, como veados ou renas. Como animais sociais que são, vivem em grupos de até 11 indivíduos, chamados alcateias, e são muito unidos entre si. São também excecionalmente inteligentes e adaptáveis. Aliás, são de tal modo adaptáveis e sociáveis, que o Canis lupus (nome científico do lobo cinzento) é o antepassado do cão doméstico (curiosamente conhecido na comunidade científica como… Canis lupus familiaris). Portanto eu não estava errado! Lobos são cães! Pelo menos de uma certa maneira. Mas fica a questão… Porque serão então tão mal vistos pelo grande público?

Certamente que haveria um grande historial de ataques de lobos a seres humanos, algum medo primevo justificado pela morte violenta trazida por dentes e garras, certo? Bem… Não exatamente.

Conquanto existam, de facto, casos registados de ataques mortais de lobos a seres humanos, não são especialmente comuns, não se tivermos em conta o potencial predatório do animal em questão. Aliás, o mais provável é que tendam a evitar pessoas o mais possível. Afinal, apesar de não termos grande armas por nós mesmos, os seres humanos continuam a ser predadores incrivelmente destrutivos, e predadores, na generalidade, tendem a evitar outros predadores. No fim, as razões pela qual os lobos são tão mal vistos acabam por ser sobretudo pragmáticas.

Veja-se que a pastorícia é um modo de vida já muito antigo, e de grande importância. Ao longo da história têm havido ataques esporádicos de lobos a gado, seja por oportunidade, ou por fome, uma vez que a presença humana tende a diminuir o número de grandes ungulados selvagens pela destruição do habitat e pela caça. É uma situação que ainda se dá, mesmo cá em Portugal. Por outro lado, existe o fator religioso e mitológico. Certas culturas veem os lobos como animais nobres, ajudantes de heróis fundadores e espíritos guerreiros por natureza própria. Para outras, podem ser a encarnação do Mal. No geral, quanto maior o conflito que existir entre humanos e outros animais, maior a possibilidade de estes últimos serem vistos numa luz negativa. Atualmente, em todo o caso, os lobos selvagens são animais extremamente tímidos e raramente se aproximam de seres humanos ou das áreas onde estes habitam. De animais que viviam em quase todo o hemisfério Norte, os lobos cinzentos foram sendo empurrados cada vez mais para as terras agrestes do Círculo Ártico, ou para cordilheiras montanhosas com poucos habitantes.

Isto sucedeu em grande medida devido à caça. Em certas zonas foram mesmo extintos, como no Japão, onde, ironicamente, a palavra usada para os designar é também sinónimo de “divindade”. Na Península Ibérica as medidas tomadas pelos governos fascistas para controlar o que se considerava “pragas” levou quase ao mesmo destino o lobo ibérico (Canis lupus signatus) uma subespécie única da região, e para a qual se desenvolvem importantes projetos de conservação para evitar que desapareça.

Voltando à minha infância, lembro-me que foi uma surpresa quando descobri que havia lobos em Portugal. E uma tristeza quando soube, quase ao mesmo tempo, que estavam em perigo de extinção. Apesar de o lobo cinzento, em geral, não ser considerado uma espécie em perigo de desaparecimento, subespécies regionais não têm a mesma sorte. No nosso país tem sido o Grupo Lobo, assim como uma série de investigadores e interessados, quem tem trabalhado para conservar este magnífico animal. Infelizmente as dificuldades são muitas.

Neste momento o Grupo Lobo está a desenvolver uma angariação de fundos no sentido de adquirir o espaço em que está construído o Centro de Recuperação do Lobo Ibérico. Um sinal dos tempos, em que apoios e recursos escasseiam, não deixa de ser um dos grandes exemplos da fauna nacional que está aqui em risco. Seria deprimente se também os lobos desaparecessem de Portugal e, honestamente, fico a perguntar-me quanto mais da nossa biodiversidade irá ter tal fim nos próximos tempos…

No fim, os lobos continuam a ser um objeto de fascínio para a minha pessoa. Animais belos e imponentes, cujo uivo ecoa pelos montes e matas como lembrança de tempos mais primitivos. Eram tempos em que a natureza nos dominava, nos aterrava. Mas esses tempos, em grande medida, já lá vão. Somos senhores do nosso mundo agora, e temos o poder para destruir, ou salvar, o ecossistema em que conseguimos subsistir. Pois proteger o ambiente nunca foi realmente sobre proteger a Terra ou mesmo a Vida. Essas continuarão a existir, indiferentes ao nosso sucesso ou ao nosso sofrimento. Conservação do ambiente é, sim, sobre manter o ecossistema que nos possa suportar enquanto seres vivos. Em conservarmo-nos a nós mesmos. Os lobos ibéricos são um dos símbolos dessa luta aqui no nosso Portugal.


Crónica de Francisco Duarte
O Antropólogo Curioso