Noite de paz, um conto de Natal

Vinte e quatro para vinte e cinco de Dezembro, noite da Consoada. Onde há um cristão, celebra-se o nascimento de Jesus e nos lares o ambiente é festivo, sobretudo por parte das crianças que esperam receber prendas em número que não reflita como se comportaram em casa ou na escola ao longo do ano. No meio da habitual azáfama da distribuição dos brinquedos, remexendo no saco dos presentes, o Pai Natal, esse sujeito de ar bonacheirão que todos os anos nos entra em casa pela chaminé, deu pela falta de uma boneca que tinha destinado oferecer a Matilde, uma menina tão pobre que de seu, além do nome, só possuía a roupa que trazia no corpo e um velhinho boneco de trapos ao qual ela queria juntá-la para lhe fazer companhia e acabar com a pena que metia vê-lo sempre sozinho.

Vivia com os pais, todos entregues à sorte, num abrigo de madeira onde se escondera, ao tempo em que fugia do dono de uma plantação de milho, um par de mendigos que era acusado de roubar do cofre de uma mansão, ouro de valor superior ao do peso que conseguiriam carregar às costas mesmo que contassem com o auxílio de um cúmplice.

Era uma casa pequena, de uma só assoalhada que dividiram numa cozinha separada do quarto por uma sala onde comiam. Tão apertada como seria o espaço onde certamente os pais dela poriam as galinhas ou os coelhos, se entretanto enriquecessem e tivessem dinheiro para ter animais. As paredes eram de madeira envelhecida revestida a barro e o telhado era composto por tábuas de madeira igualmente pouco resistentes, assentes sobre um manto de palha que ao invés de servir para conferir algum conforto à casa, ainda mais contribuía para acentuar o caráter débil da sua construção.

Estava feita num lugar pouco acessível de carro porque era preciso, para alcançá-la, abandonar a viatura na berma da estrada mais próxima, que ficava a umas dezenas de metros e subir a pé uma encosta íngreme parecida com uma escarpa, com os perigos que advinha de poderem escorregar e vir por ela abaixo. Todavia, mesmo estando a casa tão afastada do centro, no coração da aldeia e em redor já todos tinham ouvido falar das pessoas que nela habitavam, que é como quem diz, da família de ciganos que, por causa da fama que precedia os da sua raça, não poucas vezes era o alvo da ira popular que proferia impropérios tão injustos quanto se iam tornando cada vez mais frequentes, ou seja, à medida que aumentava o número de assaltos a casas e currais e cresciam os rumores de que eram perpetrados pelos da sua etnia.

Inicialmente, a preocupação dos pais de Matilde centrava-se em que, não só por causa do falatório, pudesse a personalidade da filha ficar afetada e a autoestima dela abalada, devido aos moradores da aldeia terem decidido castiga-la da pior forma possível que alguém podia atingir uma criança de seis anos, que era proibindo os filhos de brincar com ela ma rua.

Por eles, que eram adultos e estavam habituados a que os vizinhos só os olhassem de frente, ao avistar à distância, para saber de que lado da rua é que eles vinham e ver se deviam atravessá-la para o lado contrário, não representava grande perda nem ganho um dia a mais ou a menos em que estes mal lhes dirigissem a palavra. Mas nem sempre tinha sido assim.

Quando se mudaram, a mãe de Matilde desgostosa com essa situação queixava-se ao marido e deambulava pela casa às escuras a chorar, como se tivesse sofrido a perda de um familiar ou da única pessoa amiga naquele fim-de-mundo com quem podia desabafar.

Tinha já passado um ano desde que chegaram, ela com a filha ao colo, a segurar as rédeas da carroça a reboque da qual seguia o marido a passo, agarrado à sela do burro que trazia na albarda uma trouxa de roupa suja, tresandando a suor e ao cheiro da chuva miudinha que tinha encharcado o matagal nos últimos quilómetros. Vinha satisfeita, porque podiam arranjar onde ela ficar com a menina enquanto o marido trabalharia na apanha da cereja, a segunda desse ano que viria a ser fértil também na produção de castanha que depois punham à venda nas feiras e romarias dos locais de passagem onde tinham tentado fixar-se em vão devido à escassez de trabalho que rareava nos anos de crise.

Mas outras pessoas chegavam nessa altura às aldeias do interior do país, transformando a vida delas numa festa. Centenas de forasteiros vinham na esperança de conseguir um trabalho sazonal que lhes permitisse ganhar algum dinheiro. Fixavam residência nas aldeias durante algum tempo, o suficiente para dinamizarem o comércio local e darem lucro aos donos dos bares que tanto mais ganhavam quanto eles pudessem retirar para se divertirem, umas moeditas e notas à poupança que iam fazendo.

Chegavam aos magotes e a preocupação que tinham antes de arranjar poiso para dormir, era dirigirem-se aos donos das terras, que conheciam de uns anos para os outros, e eram quem podia emprega-los. Alguns desses homens, com os seus trajes coloridos, as carripanas enfeitadas e o alarido de que se faziam anunciar, davam às aldeias um colorido que era tanto maior se vinham acompanhados de alguma linda mulher ou traziam consigo os filhos de ambos. E no final, era ver, quando partiam, as ruas a ficarem novamente desertas com o divertimento a esvair-se das praças, arredado das pessoas, tal como arredada andava há muito a lembrança, mesmo daqueles residentes mais antigos, do tempo em que grupos itinerantes de ceifeiros e mondadeiras percorriam a região e só voltavam para casa quando nos campos não havia mais nada que justificasse guardar num celeiro.

Quando os pais de Matilde começaram a percorrer o país, ainda ela não era nascida, mas já eram famosos os estrangeiros, como eram apelidados pelos naturais das terras, malvistos por se disporem a trabalhar no lugar daqueles por um valor tão baixo que para amealharem que desse para retornar a casa, precisavam, no caso dos mais novos, de trabalhar o dobro ou o triplo dos anos que lhes faltaria para atingirem a Reforma do Estado.

E como se não bastasse pertencer ao grupo desses homens, para piorar a situação o pai de Matilde juntou à sua condição a circunstância de ser cigano.

Era um sujeito baixo, de cabelo ralo tipo pelo de rato mas revelava os modos de um gato selvagem se lhe faziam a mostarda chegar ao nariz, que era achatado como o de um negro de uma região de África que não vinha assinalada no mapa. No seu caso, toda maquia que conseguisse amealhar, seria para investir na compra de um atrelado de média dimensão que pudesse atar à carroça a fim de carregar os tarecos herdados da casa em ruínas. Podiam para o comum dos mortais ser objetos sem valor material nem sequer sentimental, mas à vista dos que eles tinham quando se mudaram, bastavam para pensar que ali tinham sido afinal mais bafejados pela sorte do que nos lugares por onde passaram e foram recebidos com sorrisos e abraços.

Certo dia, a mãe de Matilde, que nas entrelinhas da palma da mão adivinhava as linhas com que se cosia o futuro, enxergando muito além dos sinais de envelhecimento dados pela pele enrugada em redor dos dedos, teve um sonho premonitório e não descansou enquanto não contou ao marido o seu significado. Nele, despertava aos arremessos de um sonho que a fizera sentir-se desconfortável, com a estranha sensação de que tinha dormido num banco de madeira pensando que se tinha deitado numa cama quente e fofa, estreando um jogo de lençóis de flanela no Inverno. No meio de um turbilhão de vozes, via-se envolvida por uma multidão, mantendo uma acesa discussão com pessoas que não conhecia mas que lhe apontavam a dedo defeitos que ela nem sabia ter. Acordou ouvindo a voz do marido, porém, desconhecendo se era consigo que ele falava ou se pelo contrário se dirigia a alguma das pessoas que estavam a assediá-la, decidiu ignorá-lo, mas só até senti-lo sacudir-lhe o braço como se quisesse certificar-se de que nenhuma delas lhe fizera mal e continuava viva. Assustada, interpretou o sonho como um aviso do que podia vir a suceder e, advertindo o marido para o perigo que corriam os três, instou-o a fazer as malas e a partirem o quanto antes, mas sem que ele ao fazê-lo esperasse ver, do lado onde deviam estar os amigos, alguém que quisesse despedir-se deles condignamente.

Faltavam escassos meses para a filha, que estava matriculada na escola, ingressar nas aulas e o Outono atingira o auge. As folhas de algumas árvores atapetavam o chão, e o maior indício de que o Verão trouxera temperaturas extremamente elevadas, era visível no mato ardido transformado em cinzas pelo anel de fogo desenhado em redor da aldeia, que queimara plantações e uma vastíssima área, sobretudo de pinheiros e eucaliptos, aniquilando a única fonte de rendimento dos madeireiros instalados que só quando plantavam novas árvores é que restituíam à terra um pouco da riqueza que dela extraíam. Nesta estação, era frequente, com o crepúsculo, ver o céu encarniçado ou ganhar tons rosáceos, mas nem que tal fosse um fenómeno raro, a mãe de Matilde o veria como um sinal de mudança da mentalidade das pessoas que a levasse a mudar de opinião. Estava decidida a abandonar aquela terra de pessoas maledicentes e facilmente convenceu o marido, que a princípio se mostrou reticente.

Partiriam rapidamente, em menos de dois dias, antes que ao tempo fosse dada a oportunidade de provar-lhe que ela estava errada nas suas conclusões. Jamais, por mais anos que residissem no meio daquela gente inculta mas pacífica, alguém lhes tocaria num fio do cabelo … ou pelo menos enquanto fosse vivo e pudesse influenciar as tomadas de decisão populares, o pároco residente, um jesuíta convicto da bondade de Cristo mas pouco ortodoxo nosso atos e que prezava como ninguém a liberdade de dizer o que lhe passava pela cabeça, achando que Deus estaria desatento nas ocasiões em que nem prestava mais atenção ao que os outros faziam.

Dominava-o, desde que saíra há muitos anos do seminário no Porto, com uma licenciatura em Teologia, uma vontade indómita de abrir os corações dos homens à palavra de Jesus. Tempos houve em que, achando que ela já lá estava, se limitava a falar-lhes docemente, à espera que a bondade neles por intermédio do verbo divino se manifestasse, assim como fazia um jardineiro que ia regando as suas plantinhas na esperança de que florescessem e dessem fruto. Anos mais tarde, compreendeu que, por mais experiente que esse profissional fosse, se não cuidasse delas convenientemente, as mesmas encher-se-iam de ervas daninhas e podiam adoecer acabando por perecer, do mesmo mal de que padeciam os homens que, sem terem no seu íntimo forças para lhe resistir, discriminavam os demais apoiados no preconceito de raças. Descobriu demasiado tarde, por intermédio das pessoas mais chegadas do seu círculo de amigos, que o casal de ciganos deixara a aldeia sem o propósito de se fixar noutro lugar que não tivesse, além de um padre com personalidade forte como ele, um posto da G.N.R. perto de casa para se sentirem em total segurança.

Quanto à prenda de Matilde, bem … claro que acabou por recebê-la, porque ao Pai Natal nada está interditado e, com vantagem para a menina. Substituiu a boneca extraviada por outras duas que agora além de fazerem companhia ao velhinho de trapos também podem acompanhá-la para qualquer lado que ela vá com os pais.

FESTAS FELIZES!