O Novo Acordo Ortográfico

Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

– Bernardo Soares (Fernando Pessoa), o Livro do Desassossego

Passaram-se 104 anos desde a entrada em vigor da antiquíssima Reforma Ortográfica de 1911 que tantas dores de cabeça deve ter provocado a autores como Fernando Pessoa que no excerto acima, e usando um dos seus heterónimos, demonstra a sua resistência a aceitar a nova grafia que de repente foi imposta através de uma tentativa de simplificar a língua de forma a facilitar as relações entre Portugal e Brasil. Alguns intelectuais brasileiros tinham já manifestado ao longo de décadas a vontade de uniformizar e simplificar a língua portuguesa, no entanto, quando este acordo entra em vigor o Brasil não faz parte da Reforma acentuando assim as diferenças existentes entre as duas formas de português. Facilmente conseguimos perceber a analogia concreta do que se está a passar 104 anos depois, os únicos interessados nesta uniformização são aqueles que deviam mexer menos na sua grafia para conjugar todas as derivações da língua tendo em conta que o português de Portugal é a língua-mãe. Existem vários pontos que devem ser clarificados de forma a perceber porque razão a maior parte da opinião publica está contra o acordo e que devem passar por cima da simples justificação de “resistência à mudança”.

O excerto de Bernardo Soares não parte de qualquer tentativa para justificar que existe resistência cada vez que ocorre uma mudança à grafia, serve para mostrar algo que prevalece e resiste 104 anos depois, a completa incapacidade de perceber aquilo que torna uma língua única, e que impede que muitas vezes possa ser pacificamente e eficazmente mudada com acordos. Toda e qualquer língua tem uma história e uma evolução natural que parte de uma tradição oral e escrita. Há uma razão pela qual não estamos a falar todos latim e essa razão é uma evolução gradual que hoje distingue o português do castelhano ou o italiano do francês – nem consigo perceber como esta língua alguma vez derivou do latim. Mesmo nesta minha critica pessoal à língua dos francos há uma pontada de misticismo e admiração que ocorre através do reconhecimento da língua e da total perplexidade pelas mudanças naturais que enfrentou desde a língua de César até aquilo que é hoje. Ainda mais importante a língua faz o povo, aproxima pessoas e dá-lhes identidade, um espaço onde são compreendidas num certo espaço geográfico, e quando esta não existe é inventada através do contacto entre povos e línguas numa mistura que ganha forma e ultrapassa fronteiras. Em suma, a língua tem uma evolução natural que não deve ser forçada nem implementada sem a clara decisão do seu povo, algo que não aconteceu em 1911 – embora as circunstancias fossem outras devido a elevada taxa de alfabetismo em Portugal que dificultava uma opinião em massa, opinião essa que surgiu certamente de muitos intelectuais letrados – e que também não acontece em 2015.

A Língua Portuguesa teve alguns percalços nesta longa caminhada desde a primeira reforma ortográfica. Esta Reforma de 1911 tentou acabar com alguma etimologia residual latina e grega especialmente no que toca a letras como o “y” de lagryma” ou o “ph” de pharmacia substituindo por “i” ou “f” respectivamente. Com o passar das décadas esforços foram feitos para voltar a aproximar a grafia portuguesa e brasileira sem grandes resultados mas que culminaram com o Acordo Ortográfico de 1945, em pleno Estado Novo que foi assinado e tornado lei por Portugal, mas nunca rectificado pelo Brasil que continuou a reger-se por formulários ortográficos anteriores, no nomeadamente o de 1943 – onde já vimos isto acontecer?

O Acordo Ortográfico de 1945 é sem tirar nem pôr o que nós usamos ainda hoje e aquele que dita as regras do presente texto e continuará a vigorar na mente dos que resistem à mudança porque percebem o perigo que representa o Acordo Ortográfico de 1990, que se apresenta uma confusão tão grande que até a sua implementação é tardia e legalizada 25 anos depois. A questão que se põe a muitas das mudanças é que lógica foi aplicada tendo em conta que acordos anteriores já tinham de certo modo corrigido algumas das irregularidades da Língua Portuguesa de forma diria eu, efectiva.

Se em acordos anteriores foi impossível chegar a um acordo definitivo com os nossos irmãos brasileiros porque não elevar a fasquia e tentar englobar todos os PALOP numa única grafia? Os resultados estão à vista, Portugal vai ser o primeiro e possivelmente o único empenhado em rectificar/destruir a sua grafia única de modo a fomentar interesses económicos e não os interesses práticos e evolutivos da sua língua.  Diminui mais uma vez a importância do seu legado mais intemporal, que não necessita de mudança nem de uniformização porque vive da diferença de grafias que distinguem os países. E mesmo nesta mudança, que parece servir como defesa da língua, para facilitar a exportação e importação de literatura, algumas dimensões não batem certo. Mesmo com a nova grafia muitas expressões são características das diferentes derivações da língua; muitas expressões brasileiras inviabilizariam a compreensão completa de uma obra não por serem superiores ou inferiores mas porque fazem parte de uma tradição oral e escrita que há muito se separou da nossa. Nada melhor do que recordar o anuncio da Caixa Geral de Depósitos onde Luiz Filipe Scolari explica as diferentes expressões entre Portugal e Brasil na qual recordamos com grande precisão que pebolim é matraquilho.

Pior ainda é pensar que este novo acordo desrespeita em grande parte quem lê correctamente português e prejudica povos inteiros que nem sequer têm nada a ver com o assunto. Um dos casos mais vertiginosamente torpes prende-se com “Egito”, um pais desconhecido numa terra de ninguém pois os seus habitantes continuam a ser egípcios. Se o “p” vigora na definição de habitantes do “Egito” e se seguindo a lógica os cidadãos são nomeados maioritariamente seguindo o nome do seu país qual é a lógica por detrás desta mudança? E que respeito existe quanto às pessoas que como eu lêem orgulhosamente o “p” de “Egipto”? Ou mais flagrante ainda quem lê aqueles “c” que teimam em desaparecer mesmo em palavras onde são claramente ditas por muitos portugueses como “facto”, que embora assuma uma natureza facultativa entre “fato” e “facto” não deixa de ser  questionável, não utilizar o “c” causa mais confusão do que uniformiza. A mudança dos meses que orgulhosamente se escreviam com letra grande são também desnecessárias no sentido em que é apenas uma questão de picuinhice gramatical, Meu Querido Mês de Agosto, ou “agosto”? “A gosto” de quem pareceu bem fazer isto?

No meio da confusão todas as reformulações assumem um teor que toca o caótico, e podem ser facilmente consultadas palavra a palavra no Portal da Língua Portuguesa através de um glossário que para o cumulo tenta ensinar português aos portugueses, que em muito diferem dos de 1911, na sua maioria  analfabetos. Aos de 2015 dificilmente lhes podem passar a perna, excepto aqueles com menos de 15 anos que começaram à meia dúzia de anos a aprender a nova grafia através dos manuais escolares que têm de praticar o novo acordo.

Em nota pessoal, e para quem pensa que o acordo é de certa forma facultativo para todos, relembro que este ano lectivo a universidade que frequento (que não vou nomear) lançou um lastimável decreto que obriga os mestrandos a entregar as suas dissertações ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico, o que faz com que efectivamente depois de 17 anos a aprender e escrever com uma grafia seja obrigado a criar um trabalho que vai contra tudo o que aprendi ao longo de todo o meu processo escolar, além de ir contra os meus ideais. Uma situação que para além de necessitar de um enorme aparato burocrático para contrariar pode acabar por ser negada se o reitor mantiver as convicções do seu decreto. Depois de produzir incontáveis trabalhos ao abrigo do acordo de 1945  sou de repente obrigado a adoptar algo com o qual não estou familiarizado e pior, perceber que de repente as gramáticas dos programas mais conceituados de escrita de texto já não têm gramática pré-acordo. Escrevo tendo de ocasionalmente corrigir palavras que para meu espanto não estão erradas!

Em suma, o Acordo Ortográfico de 1990 é uma confusão que não uniformiza, e o único país que não devia abdicar da sua língua e grafia próprias está neste momento a ceder o seu património a terceiros sem uma decisão clara da parte de quem realmente fala português de Portugal, esta decisão não passa apenas por especialista de Línguas ou por interesses comerciais mas sim pelo povo. O novo acordo não corrige qualquer tipo de ambiguidade que seja útil corrigir em relação à grafia portuguesa de Portugal, gere-se pela falsa preocupação com interesses culturais maiores. Com azar todo este esforço vai apenas contribuir para destruir a nossa própria grafia sendo que os PALOP e o Brasil vão lentamente adiando o acordo até ser irrelevante implementá-lo. Resta-nos a nós cronistas, leitores, cidadãos no geral combater uma afronta aquilo que mais de único tem a nossa nação e que embora seja única em cada parte do mundo, com as suas nuances regionais nunca deixou de ser entendida. Compreendemos quem a fala e quem a escreve sem ser necessário rectificar a forma como é impressa ou formulada. Resta resistir, como muitos têm resistido, nomeadamente órgãos de comunicação social que batalham e defendem o que nos torna únicos…