O Bairro da Socasa. O meu.

Tudo o que nos rodeia influencia o nosso crescimento. As pessoas. Os locais. Os cheiros. Contudo apenas muito mais tarde percebemos que todos esses pequenos detalhes, que na altura nos passaram despercebidos, são como que peças de um puzzle que permanecerá para sempre inacabado. Convido-vos a juntarem-se a mim nesta viagem ao bairro que me viu nascer: o Bairro da Socasa. Sejam bem-vindos ao “Desnecessariamente Complicado” desta semana.

Largas dezenas de casas, todas pintadas com a mesma cor, todas exactamente iguais. De um lado da rua vivendas. Do outro pequenos prédios de três andares. No topo de um dos lados da rua estava o centro das brincadeiras. Todos lhe chamávamos “A Roda”. Nunca nenhum de nós percebeu a real utilidade daquele espaço, até porque éramos os únicos a utilizá-lo. Os adultos passavam por ela todos os dias e nem sequer a olhavam. Mas para nós, crianças e adolescentes, era o centro do bairro. Nunca compreendemos porque não olhavam com mais atenção para aquele espaço, grande e omnipotente, do qual se podia ver com detalhe toda a rua. Sentíamo-nos orgulhosos por sermos os únicos a perceber o potencial daquele espaço gigantesco.

Na Roda aconteciam jogos de futebol tão intensos como um derby lisboeta com casa cheia. Nas escadas dos prédios e das vivendas tinham lugar correrias intermináveis em busca do melhor esconderijo (afinal de contas todos queriam ganhar o jogo das escondidas).

Ali passei pela febre dos skates, dos patins em linha e das trotinetas. Nunca tive nenhum dos citados. Nunca soube sequer andar convenientemente numa trotineta, quanto mais de patins ou de skate. Aliás, sempre tive tendência a fugir de desportos radicais. Para mim a palavra “radical” sempre foi sinónimo de “olha que tu aleijas-te, deixa-te estar mas é quieto que ganhas mais”. Mesmo assim integrava-me bem. O grupo nunca foi muito extenso e dele apenas faziam parte os moradores do bairro. Vivíamos, no máximo, a dez minutos a pé de todos os nossos amigos.

Estes foram os anos 90, a época “pré-tudo”. Pré-telemóveis. Pré-computadores. Pré-internet. Pré-Hi5. Pré-Facebook. Pré-Twitter. Pré-selfies. Quando queríamos falar uns com os outros estávamos mesmo juntos, pessoalmente. Não havia “sms” (muito menos “ilimitadas”, eram pagas e a peso de ouro!).

Naquelas ruas corri e me espalhei ao comprido mais vezes do que aquelas que gostaria, tanto a pé como de bicicleta (ou como dizia o meu avô: “Já esfolaste o cromado outra vez!”). E por mais corridas que fizesse poucas eram as vezes que ganhava. Não quer dizer que fosse mau. Os restantes é que eram muito bons. Ou pelo menos era isto que eu dizia a mim mesmo.

No futebol também nunca fui um craque, para variar, mas isso não me impedia de jogar. Tinha lugar cativo como guarda-redes ou, na melhor das hipóteses, defesa-central. A não ser que fossemos poucos. Aí não havia posições fixas e todos jogavam em todo o lado. Cansava-me muito mais, mas pelo menos podia dar às minhas chuteiras o prazer de sentirem o sabor do golo. Este é o tempo em que todos queriam ser o Figo, idolatravam o Rui Costa e faziam vénias ao João Vieira Pinto. Para nós os melhores jogadores do mundo eram os que partilhavam connosco a nacionalidade e não aceitávamos que nos dissessem o contrário.

Vivi largos anos num rés-do-chão esquerdo. Depois vivi outros tantos numa vivenda, no extremo oposto da rua. Os primeiros seis anos de escolaridade foram na Escola Básica e Integrada localizada nas traseiras do bairro. Ou seja, à distância de uma passadeira e dois minutos a pé.

Durante largos anos o Bairro da Socasa foi o centro do meu universo. Não era o centro do universo de todos os que me rodeavam mas era do meu. Ali vivia. Ali estudava. Ali brincava com os meus amigos. Eram mais os dias em que ali permanecia do que aqueles em que dali saía. Respirava o bairro e sentia-o como meu. E esse era o derradeiro sinal de integração. Quando sentimos algo ao ponto de nos julgarmos parte integrante é sinal que fazemos parte desse sistema solar.

Hoje a vida mudou. Já não sou uma criança/adolescente. Já não ando na Escola Básica Integrada. Já não brinco por aquelas ruas e escadas. Vivo a não mais de quinze minutos a pé do meu antigo bairro. E é lá que me desloco uma vez por semana. Não para brincar ou pôr a conversa em dia com aqueles que ainda lá vivem (e a quem ainda hoje chamo de “vizinhos”), mas sim para ir buscar a minha afilhada à escola que outrora foi minha.

É estranho estar num local que conheço tão bem tantos anos depois. Dá vontade de entrar e correr todos os cantos e recantos, recuperando memórias esquecidas de dias inteiros de brincadeiras. Hoje percebo o quão importantes foram estes tempos e o quanto moldaram a minha personalidade e a minha maneira de ser.

E passe o tempo que passar ali serei sempre bem-vindo. Ali serei sempre tratado por “vizinho”. Ali perguntar-me-ão sempre como estão os meus pais, o meu avô e todos os restantes familiares. Ali, estou em casa.

Nunca se esqueçam de onde vieram, do que viveram, de quem marcou a vossa infância, de quem vos tornou no que são hoje. Eu sei que esses tempos têm tanto de nostálgico como de traumático, contudo se souberem tirar deles as memórias certas serão certamente seres humanos mais felizes.

Boa semana.
Boas leituras.