O caminhar do passado – André Marques

Gosto de te ver assim. Possuo este paladar congruente. Gosto de te ver pelas escuras. Sem saber para onde vou, apenas para junto de ti. Que é quando engulo os teus defeitos imensos. Que é quando te sinto o cheiro. A rosas. A jasmim. A um jardim prazenteiro. Gosto de te ver esmerada depois do amor. Ainda te canso. Trinta anos depois. Quando dei por mim, já te pertencia por inteiro. E eu sem saber de nada, como reconhece o amor, que chegou de mansinho, como quem vem de um nevoeiro cerrado. Beijou-me de madrugada, ceifado pelo cansaço. Chegou num minuto. Partiu num segundo. Soubeste parar. Foste inteligente, mulher que és.

O passado é um comboio que não nos leva a lado algum. Um vagão qualquer descarrilado. Com ou sem bilhete. Sem aquele pica chato. Maluquinho.

O atordoado prende-se a uma parte do tempo, e narra um período anterior ao presente. Escopo da história, que clarifica factos corroborados.  É através do passado que idealizamos o futuro. Que o teorizamos.

O passado. Mendigo que não valida o lugar onde está hospedado. Caminha nas ruas penosas. Sozinho. Lentamente em direção ao vazio. De alma deslavada, perpetua o olhar sobre o Tejo que o acolhe de coração aberto. O mendigo, ou o passado. Debruçado nas memórias perdidas, lamenta um chão que forçadamente lhe pertence e acolhe sem vontade própria. Sente o peso da mágoa que carrega no peito, inundando de dor a pouca vida que ainda lhe resta. Estende as mãos às águas cintilantes, recebendo delas um mundo cheio de nada que não mais é um sinal de força e determinação para que não desista e saiba enfrentar as adversidades do vento, que umas vezes sopra violentamente, capaz de o derrubar sem dó nem piedade. O mendigo, ou o passado. Faz-te à vida, homem do mundo. Dá corda aos sapatos, perturbador de mentes. Conheces as regras do jogo melhor que ninguém, e isso faz de ti um sabedor nato capaz de virar a jogada a teu favor. Faz-te coragem e desaparece, genuinamente. Com classe.

Só consigo compreender a vida olhando para trás. Mas, para seguir em frente, todos os dias desenho um novo caminho. Um caminho de novas experiências iluminadas. E de mulheres, macho que sou.

Não foi mau pertencer-te. Pelo contrário. Só que a vida encarrega-se sempre de afugentar a monotonia e acabar com as coisas boas repentinamente. Acontece quase sempre. Como uma espécie de ritual humano. Não quero ficar agarrado às coisas. Quero ficar agarrado aos sonhos. Partiste de forma agradável. Parecias um Alfa Pendular, carregada de velocidade. Cumpri parte da minha vida. Fiz-te feliz durante três décadas. Nada mau.

O presente. Minha alma desvaneceu. Partiu-se como um copo vazio. Caiu desordenadamente do armário por arrumar. Tentei segurá-lo. Em vão. O copo. Maldito seja.

Parvoíce? Talvez! Tenho algumas certezas, mas nada de concreto. Nada mais. Não fiz nada que batesse certo.

Vislumbrei o copo partido. Fumei um cigarro. Fumei dois cigarros. Aqueles que fumavas comigo. Fumávamos os dois. Ao deitar. Ao levantar. Sempre que nos apetecia.

A vida é igual para todos; subordina-se por ilusões e desenganos. O fundo é sempre igual, assim como o amor que sinto por ti. Ou sentia.

Sou uma merda, sei bem. Pouco me importa. Preocupa-me desprezar os que me odeiam, amar os poucos e cuidar dos que me são próximos.

Matamos o tempo, mas nunca as memórias. O amor, em caso algum, deve ser conjugado no passado. Ou o que se sente é verdadeiro, ou então nunca passou de uma ilusão.

AndréMarquesLogoCrónica de André Marques
Crónicas Improváveis
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