O caminho é Misericórdia

Por mim chamava o caminho muito antes de o iniciar a pé, sentia uma chama intensa e uma vontade de voltar dentro do meu coração. Pensava muito em fazê-lo o mais solitário possível porque precisava de procurar a minha paz interior. Muito embora tivesse consciência que devido a vários factores e a levar a minha filha comigo isso seria um pouco difícil, mas mesmo assim esse era o meu desejo. Vezes sem conta disse: “Este ano vou fazer o caminho sozinha ou o mais solitário possível porque preciso de silêncio”.

Momentos antes da partida sentia uma angústia enorme, comentei até que me sentia mal-disposta, ansiosa e não sabia porquê mas sentia uma grande inquietação. Esse estado partiu comigo e ficou durante o primeiro dia. De manhã quando fazíamos a partilha de grupo que tinha como tema: “Como está a tua mochila?”, eu partilhei que já fazia a peregrinação pela terceira vez mas que nunca me tinha sentido assim, estava sem espírito, sem sentido, ao contrário das outras vezes que levava o coração cheio de vontade de ajudar, desta vez a minha mochila de vida estava demasiado carregada para conseguir libertá-la e agarrar o espírito peregrino, no entanto esperava que ao longo do caminho fosse providenciando esse espírito. Caminhamos e eu não o encontrava. Comecei a murmurar e pensei: “Senhor colocaste-me aqui e eu o que sinto é uma angústia enorme, tenho vontade de vomitar, não me sinto bem, como é que vou encontrar aquela paz que tu sabes que preciso?”

Comecei a encontrar respostas, comecei a conseguir o meu silêncio, aquela inquietação desvanecia-se, mas rapidamente percebi que não era isso que me deixava feliz. Precisava de sentir um grupo unido, precisava que o caminho fosse intenso para me libertar de tanto pensamento, precisava de sentir que éramos um só e não sentia. Ao contrário de outras vezes não conseguia sentir essa união, essa partilha, esse sermos um só… Nas rectas antes de Santarém houve um peregrino que disse estar a fazer o caminho pela primeira vez muito devido aos testemunhos que eram dados, que transmitiam essa união e essa intensidade de momentos que vivíamos, inclusive tinha lido o meu testemunho do ano anterior e que se tinha emocionado com o que leu. Eu murmurei e pensei: “Senhor, o que se passa? Porque todas as expectativas estão a cair? Porque não conseguimos esta união?”.

Continuamos a caminhar debaixo de chuva e frio, comecei a ficar sozinha, com uma grande distância entre pessoas, avistei duas peregrinas, uma delas estava perdida queria voltar para trás, fomos sozinhas seguindo as setas do caminho até encontrarmos o grupo e eu pensei: “Senhor torna-nos um só.”

No dia seguinte, sentia um peso enorme nos ombros, fiquei com uma lesão no pé esquerdo, as forças começavam a falhar mas caminhava sem pensar muito nisso pois também não queria preocupar ninguém. Ao longo do dia paisagens maravilhosas foram surgindo.Levamos connosco uma peregrina que estava perdida e que segundo o seu testemunho ao ver-nos pareceu-lhe estar a ter uma miragem pois já estava completamente desesperada e sem ajuda. Passamos por um senhor que vive no meio do campo, cheio de recordações, assinaturas que outros peregrinos lhe vão dando e tinha a felicidade estampada no rosto,não tendo nada tinha tudo, todas essas coisas foram alimentando a minha alma. A noite começava a cair, a dor era intensa, só tinha vontade de me deitar no chão. Senti aí a misericórdia e a humildade de cada um a surgir, as máscaras de todos nós que estavam demasiado cerradas começavam a cair. A minha mania de não querer ser ajudada, de querer caminhar na solidão começava a cair, o meu orgulho de querer ser eu a carregar tudo e não me deixar ajudar tinha caído porque pela primeira vez tiveram de me levar a mochila para que eu pudesse caminhar… Pensei: “Senhor deste-me uma lesão no pé para que eu não fizesse o caminho sozinha e eu agradeço-te.” Começava a sentir a mudança.

A ultima etapa sabia que ia ser por si gratificante mas não imaginava que ia trazer tanto significado. Nesta peregrinação já tinha experimentado tanta coisa, a solidão, o ajudar e ser ajudado, a desunião e a união, a partilha, a chuva, o vento, o calor, o frio, tudo e não pensei que mais ainda fosse possível. Começamos a subir a serra de Minde, o calor era intenso mas as mensagens que iam aparecendo do amigo secreto iam-nos ajudando a subir, foi uma subida dura mas fomos brindados com uma missa no topo da montanha ao ar livre.  Tivemos tempo para saborear a natureza envolvente e a palavra que Deus tinha para nós.

Ao descer a serra de Minde num caminho de pedra pensei: “Senhor já que me colocaste aqui e eu não consigo encontrar um sentido, dá-me um testemunho para eu levar para alguém especial. Senhor se não for pedir demais, uma pedra em forma de coração era ideal. Levarei esse testemunho para que possa tocar o coração de quem amo”. Duvidei que pudesse mesmo realizar-se mas não deixei de acreditar e fui sempre a olhar o caminho até que lá estava e pensei:”Não pode ser… não é verdade…” apanhei-a e nunca mais a larguei, coloquei-lhe uma seta para que o testemunho do caminho fosse forte. Estava de coração cheio só pelo que me tinha sido proporcionado. A noite começava de novo a cair, finalmente estávamos a ser um só, cantávamos, puxávamos uns pelos outros e estávamos perto de chegar a casa da nossa Mãe.

Atravessávamos uma aldeia de serra, sem movimento algum, em fila indiana, cantávamos, até que algo inesperado surgiu, comecei a ver um carro completamente descontrolado, pessoas a gritar e a fugir, muito barulho que me fez pensar que estavam a ser todos levados, fechei os olhos e gritei:”Nossa Senhora”. A partir daqui uma confusão enorme surgiu mas aos poucos começamos a acalmar, a rezar o terço e o grupo estava mais unido que nunca. Consegui sentir a presença de Deus que nos salva e a presença do Diabo que coloca em nós sentimentos de revolta, nomeadamente a mim colocou-me de imediato o pensamento de que tinha levado comigo a minha filha para ter um experiência agradável e que estava a proporcionar-lhe uma experiência traumática. No entanto, quando percebi que ela estava preocupada com todos mas também com o homem que seguia no carro, não querendo que acontecesse mal nenhum a ninguém, esse pensamento desvaneceu-se e logo percebi que deveria ter um coração puro como o dela. Fizemos os últimos 3km levados ao colo e em menos de 30min estávamos ajoelhados a agradecer a misericórdia que Maria teve por nós.

Aquele caminho que eu queria fazer o mais solitário possível foi o caminho mais belo que fiz, foi verdadeiramente um caminho de misericórdia, pois o Senhor ao longo do caminho proporcionou-nos momentos únicos. No primeiro dia em que fui assolada por uma angústia enorme deu-me sempre alguém para me apoiar e ajudar a ultrapassar esse sentimento. No segundo dia ao caminhar e avistar peregrinos sozinhos mostrou-me que só nos juntando chegaríamos ao grupo e seriamos um só. Ao terceiro dia quando fiquei com o pé lesionado fez-me perceber que o caminho jamais é para fazer sozinho, pois só com a ajuda uns dos outros chegaria. Ao quarto dia tivemos Deus e o Diabo connosco, Deus mostrou-nos o quanto nos ama e a mim particularmente mostrou-me através daquela pedra que é na simplicidade dos nossos pedidos que ele se manifesta mostrando o seu amor por nós. O Diabo mostrou-nos que só não faz o mal, a divisão, a tragédia se não quiser e tiver poder para o fazer. Todos estes dias são um resumo daquilo que é a minha e a tua vida.

Ao longo destes dias não houve televisão, wii, playstation ou qualquer outro tipo de tecnologias, houve apenas o essencial. A felicidade está em viver com o essencial.

O Senhor ofereceu-nos uma bonita história para contar, uma história de misericórdia. E eu cheguei com a paz que tanto ansiava.