Uma das vantagens de se estar desempregado é o facto de possuirmos mais tempo para fazer aquilo que mais gostamos. O que antes seria realmente impossível de fazer — porque o trabalho, para além de ser uma coisa que, por vezes, maça como o camandro, é igualmente algo que ocupa bastante tempo do nosso dia. (Hum, será por esta razão que às vezes assisto algumas pessoas a lamentarem-se pelo facto de o dia ter apenas 24 horas?)
Fazia já imenso tempo que não andava de bicicleta. “Pois, e normal… Tu trabalhavas, não era Ricardito? E tinhas pouco tempo disponível para andar de bicicleta…”, diz o leitor que está pacatamente em casa, sentado de cuecas em frente ao computador a ler esta crónica. Não, meu caro leitor desnudo. Não era por causa do trabalho e do pouco tempo que eu tinha para andar de bicicleta. Era mesmo devido a uma doença de que padeço, e que me impedia de andar de bicicleta. É uma doença bastante comum nos dias de hoje, que dá pelo nome de “Preguicite Aguda”. E, segundo me consta, parece que se trata de uma doença que não tem cura, e que pode atacar uma pessoa a qualquer momento. Especialmente depois de um almoço de Domingo na casa dos pais…
Mas esta semana eu decidi enfrentar esta maldita doença, pegando na bicicleta e pedalando em direcção ao infinito e mas além! Se bem que este “infinito e mais além!” fica apenas a uns míseros 10 quilómetros da minha casa. Mas já é um belo começo, para quando se quer combater esta doença maldita. Bem pela fresquinha, peguei na mochila e enchi-a com uma garrafa de água, uma peça de fruta e o livro que estou, actualmente, a ler. Agarrei na bicicleta, e lá fui em em direcção à Praia do Rosarinho, na Moita. É uma praia pequena, mas bastante acolhedora — quando não está maré vazia, obviamente. Porque aí torna-se apenas uma praia malcheirosa como o camandro. Apesar de a distância ser relativamente curta, a verdade é que foram os 10 quilómetros mais difíceis da minha vida. Não por cansaço, mas porque o raça do selim magoava-me o rabo de uma forma absurdamente torturante, especialmente quando tinha de passar por zonas onde o pavimento parecia que tinha sido alvo de um bombardeamento nuclear.
À chegada à zona do Rosarinho, optei por não ir directamente para a praia, mas sim por ficar num pequeno espaço de relva com umas mesas enormes e bancos igualmente enormes de madeira, e aproveitar a sombra das árvores para ler um pouco — o difícil foi conseguir arranjar forma de me sentar nos bancos, visto que tinha o rabo num estado lastimável. (Que frase mais absurda para se usar numa crónica. Quer dizer, a menos que seja uma crónica escrita pelo José Castelo Branco… Aí já deixa de ser totalmente absurda e, convenhamos, começa a fazer algum sentido…)
A dada altura da leitura, eis que sou abordado por um senhor. O homem aparentava ter à volta de sessenta e poucos anos, cabelo grisalho e trazia vestido uma t-shirt às riscas azuis e brancas. E… Bom, e o diálogo que tivemos os dois, foi das coisas mais absurdas que se pode imaginar. Foi… Hum… Algo assim:
Homem: Bom dia, amigo.
Eu: Bom dia…
Homem: Está uma bela manhã, não está?
Eu: Está, sim senhor…
Homem: E uma bela manhã para ler um livrinho à sombra das árvores, não é verdade?
Eu: Ou para pelo menos tentar ler um livrinho à sombra das árvores sem ser interrompido…
Homem: Pois… Compreendo. Ler é uma prática que envolve muita concentração. Eu quando estou a ler, gosto de estar sossegado no meu canto e concentrar-me apenas nas palavras…
(E aproveitou para se sentar ao meu lado…)
Eu: Pois… Sim, é preciso estar-se bastante concentrado nas palavras, quando se está a ler um livro…
Homem: Exacto. Parece que já temos algo em comum… Eh, eh. Hum, e que livro é que está a ler?
Eu: “As Mentiras de Locke Lamora”, de Scott Lynch…
Homem: Ah! Está a aprender a ser mentiroso, é?
Eu: Quem, o Locke Lamora?
Homem: Não! Você! Para estar a ler um livro sobre mentiras… Eh, eh, eh!
Eu: Ah… (E solto um pequeno sorriso, para não parecer mal-educado)
Homem: Pois é, pois é… Hum, o meu amigo gosta de andar de bicicleta, é? Mas, olhando aqui para a sua bicicleta, parece que ela não tem tido muito uso…
Eu: Pois… Sim, gosto de andar de bicicleta. Faz é doer o rabo!
(E assim que soltei esta frase, arrependi-me imediatamente…)
Homem: O rabo? Hum… Ai é?…
Eu: Sim, sim… O selim magoa e tal… Quando não se está habituado a andar muito… Sabe… Hum… de bicicleta, é normal ficar com o rabo a modos que magoado.
Homem: Oh, coitadinho… Mas eu tenho solução para isso…
(Aqui devia ter ficado calado, mas a minha curiosidade levou-me a proferir as seguintes palavras…)
Eu: Ai, sim?
Homem: Sim! Com uma massagem… Sabe, eu tenho um curso de massagista. Aliás, não é bem um curso… Foi apenas um workshop de 2 horas que fiz há uns anos. Mas tenho adquirido muita experiência ao longos dos anos… Se o meu amigo quiser… Posso…
(Uma certa revolta começou a crescer dentro de mim, e a vontade de aplicar um valente banano naquele homem começou a fazer bastante sentido. Mas apesar de tudo, tentei ser educado…)
Eu: Não. Não é necessário, obrigado.
Homem: Oh… Não me custava nada, mas o meu amigo é que sabe…
Eu: Obrigado, mas não é preciso.
Homem: Você é que fica a perder… Dizem que eu tenho umas mãos suaves… que fazem milagres.
Eu: Ok…
Homem: “Ok”, quer a massagem?
Eu: Não! Não quero a massagem. Importa-se de me dar alguma privacidade para continuar a ler o livro de uma forma pacata?
Homem: Sim, claro… Mas… Antes de o deixar na sua vida, permita-me que lhe faça apenas mais uma pequena pergunta…
Eu: Ok, ok… Faça lá o raio da pergunta…
Homem: O que acha de fazermos aí uma coisinha a três? Hum? Assim uma aventurazinha? Hum?
(Fechei os punhos com tanta veemência que até fiquei com os dedos roxos e inchados, assim que ouvi aquele depravado a perguntar-me se queria uma coisinha a três! A minha vontade era partir para a violência e enchê-lo de nódoas negras, mas a minha reação foi muito diferente…)
Eu: Hum… Tem horas que me diga?
Homem: Tenho sim, senhor. São onze e vinte, meu amigo…
Eu: Onze e vinte? Ena! Estou super atrasado para… para… uma consulta de… no… na… Então, uma consulta de… otorrinolaringologia! É isso! Adeusinho…
(Arrumei o livro à pressa na mochila, montei-me na bicicleta e saí disparado dali! Ao longe ainda ouvi o depravado dizer:)
Homem: Ena! Parece que o meu amigo anda a aprender umas coisinhas com esse tal de Locke Lamora!
(Fingi que não ouvi e pedalei com todas as minhas forças, para tentar desaparecer dali o mais rápido possível, acabando por me sentar no selim e gritar que nem uma donzela em apuros, devido ao raça do selim aleijar-me e de que maneira o rabo… E uma pergunta ficou a pairar sobre mim, desde aquela manhã. Se era uma “coisinha a três”, e nós éramos só dois… quem seria o terceiro elemento?)
Isto é que é uma “Vida de Cão”, hem…
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