O dia em que quase fui guarda-redes do Porto – João Nogueira

Constituição. Captações de jogadores. Mil novecentos e noventa e três. Um campo de terra batida. Cal a marcar as quatro linhas. Frio. O barulho dos pitões de alumínio a bater na pedra. As luvas. Rotas, claro. No polegar.

Entro. Toco no chão e benzo-me. Como os grandes. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Olho para cima. Que é onde vive Deus. Falo com Ele. Um senhor de barba grande. Tento chegar a um acordo. Prometo-Lhe meia-dúzia de coisas. Em troca, só quero uma. O símbolo. Cosido no peito.

Sou um guarda-redes pequenino. Não chego à barra. Não tenho força nas pernas magrinhas. Chuto. A bola não sai do sítio. Tenho treze anos. E um sonho muito grande. Do tamanho dos olhos que tenho. A seguir, um remate. Uma bomba atómica. Um cometa. Uma bala. Ouve-se golo. Mas calma! Nem tudo o que parece é! Cresce-me uma força nas chuteiras velhas. O bocadinho de campo por baixo da baliza é a minha pista de aviação. Levanto o nariz. E descolo. E voo por ali fora. De boca aberta. Com o braço esquerdo esticado, de palma da mão aberta, sacudo a bola para longe. Mudo-lhe o destino. Mudo-lhe a sorte. Desactivo a bomba um segundo antes de explodir. E sou trovão a cair no chão. A cair lá de cima. Do céu. Que era onde estava. Que era onde me sentia.

Respiro fundo. Entra-me frio. Do bom.

Depois, penálti. À minha frente, um menino. Chamavam-lhe Edgar. Um matulão. Um marmanjão de treze anos e trinta metros. Era o que parecia. Mais rápido que a própria sombra. Um pé esquerdo mágico. Saía-lhe o génio da lâmpada por ali. Era o Ali Babá. Com quarenta ladrões atrás dele para lhe roubar a bola. Que era o tesouro. Fugia sempre.
Agora era eu e ele. Eu, finguelas. Com a luva rota no polegar. Eu, capitão de mim mesmo, golas ao alto, pronto para fundar uma nova dinastia na minha História. Ele, costas direitas. Braços à Popeye quando comia espinafres. Gémeos à Maradona. Meias para baixo. Camisola por fora dos calções. Mãos nas ancas. Olha-me nos olhos. Faz um balão com a chicla. E eu finguelas.

Desdém.

Ouve-se um apito. Ele corre para a bola. Cada passo, um tremor de terra. E eu finguelas. É mágico. Chuta de trivela. Um arco ao contrário. Direitinho ao alvo. E eu finguelas. Mas pássaro. De voo picado. A agarrar o tesouro. Como se agarra um filho. Junto ao peito. A cara cai na lama. Estou sujo. Mas mais bonito que nunca! Trinta e dois dentes brancos que se riem. Mostro a bola ao mundo. É minha, caramba! Os outros pequeninos abraçam-me. Fazem pouco do vilão. O mau da fita. A quem nunca roubavam a bola.
Estou feliz. Sou géiser da Islândia a entrar em erupção. E Super-Homem. Estou grávido. De um sonho. Que me cresce em todo o lado. No coração. Onde marcham soldados e correm cavalos loucos. Nas pernas. Que tremem. Na pele. Arrepiada.
Defendo o penálti e as águas rompem. O sonho vai nascer.

Mas não.

O treinador diz que sou pequeno. Diz para voltar quando crescer. Faltam-me dez centímetros. Também me pede para ver as mãos. Diz que lhes falta calo. E vai à vida dele. E atira a minha para um mar onde vivem gigantes e papões.

Cresce-me um rio nos olhos. É Inverno em mim. Dia de temporal. Há vento a infinitos quilómetros por hora. E na meteorologia tinham jurado que vinha sol.
O sonho não nasce. Desnasce. E eu também.

Foi num dia em que chovia muito. Em que chovia cá dentro. Chovia da cave ao sótão da casa que sou. Que percebi que a Bancada das Antas nunca ia gritar por mim. Que eu ia ser sempre dos que grita. Só.

Arrumei as luvas. Pendurei as chuteiras. Escondi as fotografias. Era o sonho a morrer. A ser levado. A desaparecer.

E um sonho que morre, tem de ser chorado. E com a intensidade toda. É respeito. É como no amor. Quando se perde o que se amou muito, fica-se triste. Muito. Durante o tempo que tiver de ser. Não há hipótese! Não há comprimido. Não há nada. Chora-se. Fica-se mal. Assoa-se. Fica-se triste. Mas tem de ser assim. Para a coluna continuar direita. Para que, devagarinho, a dor comece a ir para longe.

Hoje, não sou guarda-redes do Porto. Nunca fui. Mas sinto falta daquilo que nunca tive. Daquilo que nunca fui. Daquilo que queria ter sido. E que não fui.  Por um triz.

Na avenida da liberdade que há na minha cabeça, continuo a ser passarinho. Que voa para a bola não entrar. Que voa para lhe mudar o destino.

Às vezes ouve-se golo.

Mas calma!

Nem tudo o que parece é!

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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