O dia em que te larguei a mão

Levei-te comigo em viagens ao fim do mundo. Levei-te pela mão quase como se leva uma criança. E levei-te assim para te proteger, para me certificar que não te perdia de vista na imensidão das coisas que desconhecíamos.Não quis ter mais ninguém como companhia senão tu. Tu, tu que me embriagavas os sentidos, tu que me entorpecias os medos, tu que me erguias a cabeça quando os meus olhos fixavam o chão teimosamente.

A certa altura larguei a tua mão e deixei de te ver. Nunca mais te encontrei. E fartei-me de procurar! Revirei o mundo, tirei o azul ao céu, andei sobre águas trépidas e chamei sempre o teu nome. Só a minha voz voltou, distorcida pelo eco do vazio que deixaste. Sentei-me algures, abraçada aos joelhos, com o peito a contorcer-se de dor, com os olhos em brasa e a cara áspera. E mesmo assim não desisti de chamar-te, com a voz reduzida a rouquidão. Levantei-me e sentei-me novamente, sempre sem nunca conseguir vislumbrar o que quer que fosse de ti.

O mundo renascia todos os dias enquanto eu me esforçava para manter os olhos abertos. Perdi a conta ao número de vezes que vi o sol nascer, mas lembro-me nitidamente de todos os momentos em que me senti morrer. Lembro-me dos olhos encovados, da boca seca, dos pequenos períodos de tempo em que parei de respirar. E tudo porque qualquer coisa era mais apetecível do que o reconhecimento da tua ausência, tudo era melhor do que lembrar-me daquele segundo de ingenuidade que me fez largar a tua mão.

Voltei para casa alguns dias depois. Não levava nada comigo, não me levava a mim mesma. Carregava apenas um corpo quase morto. Morto de cansaço, morto de culpa e, acima de tudo, morto de arrependimento. Só mais tarde percebi o que realmente tinha perdido. Tinhas sido tu a fazer-me viver aquele momento em que nos apaixonamos tão perdidamente que não nos importamos sequer com a forma como as coisas possam vir a acabar. Mesmo que doa, mesmo que moa e mate, é sempre melhor do que nunca ter vivido nada. E toda a dor que possa vir daí será uma prova de que sentimos, de que demos tudo de nós por algo muito maior do que o mundo que tentámos descobrir.

Nunca mais te encontrei. E a verdade é que nunca mais te procurei. Fechei-te num baú e desfiz-me dele. Queimei as provas, neguei os factos e renasci. Voltei do mundo dos mortos só para achar a vida aborrecida e sem sentido. Deixei que o tempo passasse, deixei que me enrugasse a pele das mãos que um dia te seguraram. Deixei que os cabelos perdessem a cor que o meu olhar já tinha perdido há anos. E voltei a sentar-me no mesmo sítio onde um dia chamei desesperadamente por ti. Nunca mais te vi.

Já não me dói nada. Já não sinto nada em mim. A única coisa que percebi foi que mesmo tendo tentado deixar-te para trás, tive-te comigo a vida inteira. De certa forma nunca te larguei a mão. Levei-a ao peito e marquei-te na minha pele. E o amor que pensava estar morto e enterrado, ergueu-se da terra para pairar sobre mim com o teu nome nos lábios, repetido vezes e vezes sem conta. Não tive medo mas também não me perdi na esperança vã de que fosses tu. Olhei-o nos olhos e percebi subitamente que o nosso amor nunca conheceu a morte. Foi vida durante todos os dias em que sol despontou por entre a janela do meu quarto, durante todos os momentos em que senti uma força sobre-humana impelir-me a fazer algo que não conseguia, durante todos os momentos em que parei de respirar e senti os meus pulmões a encherem-se de ar novamente.

Faria tudo de novo. Mas nunca mais te largaria a mão. Há erros que carregamos connosco o resto da vida. E muitas vezes fazemo-lo porque não acreditamos que exista felicidade que perdure a cada nascer do dia e a cada cessar do mesmo. Hoje, já com as mãos envelhecidas, com o rosto cansado e os cabelos grisalhos, chamo uma última vez o teu nome. E mais uma vez ouço a minha voz devolvida pelo vento que passa por entre os dedos que um seguraram na tua mão.

*ficcional

BárbaraBorralhoLogoCrónica de Bárbara Borralho
Riso sem siso