O direito à dignidade

As notícias não eram animadoras. Celebrava-se hoje um ano, data em que lhe foi apresentada uma realidade que até aí desconhecera ser possível. Celebração…que palavra tão ambígua. Nesse último ano viu, em cada trajeto entre aquela sala fria e a porta de saída, a sua esperança esvanecer-se pelos corredores. Mas hoje era diferente. Hoje, toda a esperança jazia naquele chão gelado. Aquela frase trespassara-lhe o coração…“Agora é sempre a decair. Lamento muito”.

     Sempre fora independente, detentora de uma energia universal rara, sempre ativa física e mentalmente. Nunca dependera de ninguém. Até a sua mãe lhe dizia orgulhosa que sempre fez tudo sozinha. Depois dos primeiros passos, nunca mais ninguém a parou. Ela, também mãe de dois rebentos com a mesma luz, realizada e apaixonada pela sua profissão, alimentara-se sempre das coisas simples da vida mas…e agora?

     Não era famosa nem diretora de uma empresa. A sua realização pessoal preenchia-se pela sua profissão de professora, era esse o seu sucesso. O resto do tempo livre dedicava-o entre a família e voluntariado. Se podia ajudar, dar um pouco de si, como poderia ela não o fazer, sabendo que há quem precise?

     Ele deixara de trabalhar a tempo inteiro para cuidar dela. Não podiam pagar a alguém para o fazer, mas ele fazia-o com toda a dedicação. Nutria por ela não só um grande amor, mas também uma admiração imensa…aquela mulher que sempre tanto deu de si aos outros.

     Vivera os últimos 3 meses com dores constantes. Já não se recordava de como era viver sem dor, mas agora, a dor tornara-se intolerável. Não era a dor física, era a dor mental que era insuportável. A dor de ver os outros sofrer por ela…isso é que a matava. Ouvia o seu marido chorar em silêncio enquanto lhe preparava a medicação. Os seus filhos, já com idade suficiente para perceberem que algo se passava, sentiam na pele a sua limitação, sentiam a falta da mãe, que viam agora cada vez mais frágil. Eles sabiam, no fundo, o que se avizinhava. Sabiam que não era para já, mas que iria acontecer em breve.

     Fazia hoje um ano que tinham tido esta conversa pela primeira vez e agora, chegara a hora de tomar as rédeas, de ganhar controlo sobre o seu destino. Decidira morrer sob as suas próprias regras, era a sua vontade.

     Esta não é a minha história, nem tão pouco a história de alguém que conheço, mas podia ser. Uma das coisas que possivelmente o Homem mais teme é a morte.  Logo em seguida, o medo da solidão e, obviamente, o medo de morrer sozinho.  A morte raramente tem hora marcada mas…e se pudesse ter? E se lhe dessem a opção de não morrer sozinho, de fazer esta viagem de mão dada com aqueles que ama, na companhia daqueles que lhe dão alento? E se pudesse iniciar essa nova jornada através do suicídio assistido?

     Uma grande maioria de nós nasce perfeito, temos tudo no sítio, cinco dedos em cada mão e cinco dedos em cada pé, temos todos os nossos sentidos, vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos…tudo dádivas que assumimos como garantidas e naturais. Mas e se fizéssemos o exercício de viver um dia inteiro de olhos fechados? Um dia de ouvidos bem tapados? Se ficássemos um mês inteiro deitados numa cama, sem sequer ir autonomamente à casa de banho?

     Talvez este exercício nos permitisse, de uma forma muito simples e ligeira, ter noção do que é viver do outro lado. Talvez experimentando uma limitação com que muitos vivem uma vida inteira, consigamos imaginar um cenário mais sombrio, o de sofrer de algo que não tem retorno, o de estar na pele de alguém que sabe que o fim está próximo, mas que não tem controlo sobre o quando…ou até poderá ter.

     Se lá chegarem, vistam-se agora na pele de um pai, de um filho, esposo ou esposa, de um amigo. Somos assim tão sádicos, masoquistas, ou até mesmo egoístas, para obrigar outro ser humano a ir ao máximo da sua degradação? Que direito temos de forçar um ser humano a conhecer o que é a dor? A exigir aos familiares e amigos dessa pessoa que guardem para sempre na memória aquela degradação, aquela tristeza, aquela dor, aquela imagem, em alternativa a uma memória daquela pessoa enquanto era autónoma, feliz e saudável, digna.

     Quantas vezes agradecemos o que temos? Com que facilidade julgamos quem decide morrer com dignidade? Quem somos nós para dizer o que é moral ou imoral? Executamos diariamente o papel de Deus, para trazer ao mundo, para ver nascer, para tratar, para prolongar a vida, para curar…Porque não o fazemos na hora de partir?

     Nunca questionamos partos, tratamentos, transplantes. Tudo o que seja feito para prolongar a nossa estadia neste mundo é inquestionável, faz-se de tudo sem qualquer interrogação. Todo em prol da vida. Mas a morte, faz parte da vida. Porque tratamos a morte de forma diferente?

     Não estou sequer a falar de subjetividades, de casos como um marido que diz explicitamente não querer continuar neste mundo quando a sua esposa doente partir. Não vou debater um caso triste em que um casal idoso decidiu terminar com a sua vida voluntariamente por lhes ter sido rejeitado um pedido de suicídio assistido. Falo das coisas simples. Falo de casos em que um ser humano é incapaz de viver com dignidade, em que vive dependente dos outros, em que os outros, e ele próprio sofrem constantemente pela dor, falta de autonomia, limitação…falo de uma mente sã, consciente de tudo, com noção dessa realidade, cruel e irreversível, num corpo moribundo.

     Somos donos do nosso corpo, a nossa máquina. Cabe-nos a nós cuidar dele da melhor forma possível se assim o quisermos. Não vou dizer que a eutanásia é uma coisa bonita, um processo que se faz com leveza, sem dor, sem sofrimento mas…não deveríamos nós ter o direito de escolher como fazer essa viagem, de forma pacífica e digna? Todos os que amamos partirão um dia, outros já partiram. Estaremos cá para ver alguns partir, ou talvez possamos partir antes, não sabemos. Mas, não preferia o leitor, se a sua história se espelhasse num desses cenários, não morrer sozinho?