O espião que veio do calor

Dourava-se-lhe a pele ao sol, numa toalha de praia estendida na varanda, que era grande mas onde, em minha opinião, nada mais cabia para onde nessa altura me apetecesse desviar o olhar.

Conhecia-lhe os hábitos, tão bem como a meu respeito eu sabia não ser capaz de resistir à tentação de ir todos os dias espreitá-la à mesma hora. Do meu quarto, em pé, mal desviava o cortinado para vê-la despir-se e passar suavemente no corpo, um creme protetor solar que lhe deixava na pele de aspeto crocante, uma película que a não protegia somente do meu olhar fulminante.

Espreitara-a pela primeira vez por acaso, mas depois dessa, já tantas vezes se seguiram como os dias em que fiquei à espera de ver surgir uma oportunidade na rua para lhe falar. De biquíni dava-lhe não mais de dezanove anos, mas à distância a que a via de dois andares abaixo do meu, tanto podia não distinguir o uso de maquilhagem que a fizesse parecer mais nova, como afinal ela estar a usar às escondidas da mãe as roupas de adulta dela para parecer mais velha.

Por causa dela, tornei-me pontual. Saía da escola a horas para estar em casa a tempo de vê-la despir-se e, antes de esfregar no corpo as loções da mãe, estender suavemente a toalha de xadrez num cadeirão prateado reclinável, cuidadosamente como se pretendesse ali passar a noite sem acordar no dia seguinte com dores nas costas.

Todavia, só de binóculos conseguia observá-la de tão perto que só faltasse poder pôr-me a mão na testa, na tentativa de adivinhar o que eu estivesse a pensar. Com recurso a esse precioso instrumento, admirava-lhe melhor os contornos do corpo do que se me dispusesse a sonhar com uma mulher de uma dimensão bastante superior em comparação com todas as com que me tinha cruzado até àquele momento.

De tão perfeito que se me afigurava, ao nariz dela, eu se pudesse chegar com a mão, apalparia só para ter a certeza de que era verdadeiro. Nos ombros e no pescoço, esfregaria as mãos como se quisesse restitui-la à vida depois de ter estado adormecida e aos lábios, encostaria a boca para aquilatar da sua capacidade de me fazer voltar a acreditar no poder de um beijo.

Que pensaria ela se descobrisse que este hábito se tornara tão essencial para manter-me vivo como a função de respirar e que com menor despudor pensava em despir-me como ela, mas no meio da rua, do que na hipótese de alguém andar como eu a espiá-la e poder seduzi-la antes de mim. Não sei o que me dera, para a partir de certa altura passar a ter ciúmes até dos homens que caminhavam na rua e não tinham como saber do costume dela, às vezes, de baixar as alças do soutien para não ficar nos ombros com a marca inestética da peça de roupa cujo nome eu gostaria de ver abolido do seu vocabulário.

Logo ao início, reparara no minúsculo piercing que trazia colado ao umbigo, ao centro da barriga numa região plana da qual na direção das virilhas se descia atravessando um desfiladeiro. Quem me dera ela nunca mudar da posição de deitada, com os joelhos dobrados de barriga para cima, como se quisesse mostrar-me alguma coisa em que eu não tivesse reparado desde que me atrevia a mirá-la do mais fino fio de cabeço da cabeça aos pés.

Quem me dera, quando a vejo levantar-se ela permanecesse lá, ou quando a vejo vir de dentro com a toalha enredada no braço, trouxesse ainda mais motivos para juntar àqueles que já tinham feito apaixonar-me. Estou a pensar seriamente em tirar-lhe daqui, de onde a vejo agora deitada de costas, uma fotografia para adicionar no Facebook ao álbum de retratos das minhas ex-namoradas, que fui esquecendo à medida que, a respeito de cada uma, ia sabendo que começava a andar intimamente na companhia de alguém.

O que ela não pode é saber. Sei lá que juízo faria de mim, que lhe quero tão bem. Ao sentir-se invadida na sua privacidade, poderia passar a sentir-se como num corpo estranho e logo neste com que eu começava a ficar familiarizado, ao cabo de tantas horas, a partir do meu posto de observação, ter passado a espiá-la. E se estou sempre de lado quando ela se deita ao sol, então é como se fosse a sua sombra.