O estranho caso das pegadas de dinossauro que descobri por acaso enquanto passeava a pé com a minha namorada pelas ruas da pacata vila da Lourinhã

 “ Dizem que há dinossauros na Lourinhã. Nunca os vi. O que não admira! Ao teu lado não tenho olhos para mais nada! És perfeita e por isso subtrais a minha atenção ao que se passa em redor. Não invento coisas, és tu que me dizes como elas são antes de pegar no papel e dar corpo a um projeto. Rabisco o teu nome e já está, todo o sentimento à tona numa folha A4 onde não cabe a primeira letra da palavra que representa o que sinto por ti. Só atendo às questões de pormenor que te dizem respeito, e por isso reparo no efeito que tens sobre as flores do campo que à tua passagem exalam novas fragrâncias… “

São como as que avisto pelo vidro do carro em andamento, guiado velozmente pela minha nova namorada a caminho da casa de uma tia dela que vive na Lourinhã. Pertencem-lhe, assim como o chilrear das aves, mais do que a qualquer outra pessoa com quem não se parecendo tanto não tenham em comum o facto de serem belas e graciosas.

Era quase meio-dia. Tinha acabado de pensar numas palavras para pôr num poema que lhe queria dedicar num jantar romântico, quando reparei pela hora que nos deslocávamos atrasados para o almoço. Por isso avançávamos rapidamente numa estrada sem movimento e só abrandámos antes da curva que antecedia o desvio que conduzia às primeiras casas do lugar, as que avistavam quem vinha do lado da variante à estrada nacional que saía da A8, passando por Torres Vedras.

Eram antigas mas estavam em ótimo estado de conservação, pintadas de fresco com motivos campestres e umas faixas azuis que lembravam as casas caiadas nos povoados alentejanos, exemplificando o tipo de construção que encontraríamos se continuássemos em direção ao centro da vila. Assemelhavam-se a postos fronteiriços abandonados, pois não se via vivalma àquela hora, à entrada de uma cidade fantasma. Os únicos vestígios de vida, vinham de três galinhas que pararam de correr para nos observar, como se esperassem ouvir-me chamá-las para virem comer-nos à mão grãos de milho das maçarocas já descascadas que apanhássemos dos campos de cultivo das imediações. Uma rua deserta, era a imagem que eu guardava das aldeias desertificadas da minha infância, passada junto à fronteira com Espanha mas a uma escala maior, do género de que nem os animais vinham ter connosco quando nos viam com uma sacola para distribuir a ração.

Retomámos a velocidade mal as condições da estrada melhoraram, com menos buracos e outros tão mal remendados que ameaçava a segurança até de quem circulasse de trator, e mais adiante, após contornarmos umas rotundas, passámos rente a uma placa de sinalização que apontava em direções distintas os edifícios do Tribunal Judicial do concelho e o do Museu Municipal que fiquei com curiosidade de visitar.

Escolhemos o caminho mais curto, virando à direita em direção ao largo onde se situava o órgão do poder autárquico, que era o edifício dos Paços do Concelho, já que o nosso destino era numa daquelas ruelas que iam dar ao centro, em cujas imediações, quem morava, podia dar-se ao luxo de deslocar-se a pé, caso precisasse de sair para fazer compras, tratar de algum assunto ou simplesmente passear. Todavia, tenho a certeza de que chegaríamos praticamente à mesma hora, mesmo que optássemos por ter percorrido a distância maior, isto é, saindo pelo lado do Estádio Municipal e depois seguindo o caminho em direção à cooperativa, porque tenho para mim que a minha namorada é uma excelente condutora, nas mãos de quem podemos dar-nos ao luxo de voar em maior segurança do que nos aviões de muitas companhias de aviação. Orgulho-me tanto de ela ser tão boa que daqui a um ano no máximo, não me admirava de que, se vocês folheassem umas revistas da especialidade, viessem a deparar com uma fotografia dela sorridente, rodeada pelo staff técnico de uma marca de prestígio, a receber das mãos do presidente da Federação Internacional de Automobilismo e a erguer um troféu de vencedora numa corrida disputada num circuito só para profissionais.

Querem conhecê-la? Pois bem, chama-se Beatriz, mas trato-a carinhosamente por Bia, mesmo na frente da mãe dela, uma mulher belíssima, a quem, no entanto, hesito em confessar o propósito de amar a filha nos próximos vinte e cinco anos, na esperança de que com o tempo possamos achar que vão ficando cada vez mais parecidas.

Avistámos a casa da tia dela por detrás de uma árvore que, sem me lembrar de que estávamos no outono, pensei que ficara desprovida de folhas por ação do vento que podia ter soprado por ali com a força de um tornado, com o tio da minha namorada de calções à porta, a valer-se da vaidade para exibir umas perninhas de alicate, que eram esqueléticas à vista dos braços robustos que teriam, esses sim, força para arrastar uma carroça quase carregada com a produção anual de figos da única árvore de fruta que mantinham no quintal das traseiras. Quando nos viu a sair do carro que estacionámos no outro lado da rua à sombra, ele não conteve o entusiasmo e gritou para dentro da casa de onde assomou à janela dum andar de cima, a esposa com rolos na cabeça e o cabelo ainda húmido como se fosse para ao vento ele secar mais depressa.

Nunca a tinha visto a não ser em fotografia, mas aparentava corresponder à ideia com que tinha ficado de ser baixinha e entroncada, ela sim, com força de braços suficiente para acabar de encher a carroça do marido com a produção de apenas um mês de batata branca e roxa que ele não podia apanhar do chão por causa das artroses nos joelhos que pioravam à medida que se baixava e ficava uns minutos na posição de cócoras.

No álbum de família que eu vi em casa da minha namorada, a tia dela aparecia ao lado da irmã, de véu num altar em vestido de noiva, numa fotografia a preto-e-branco da qual se extraíam enormíssimas diferenças entre elas. Foi tirada no momento em que estavam ambas de olhar focado num padre que aparecia de costas a ler aos noivos uma passagem da Bíblia, evocando as palavras certas para exortá-los a serem fiéis um ao outro, no dia em que casou com um homem que em minha opinião não podia ser aquele que avistáramos na rua a mostrar o físico. Na foto, ele era muitíssimo mais gordo, dando a impressão de ser entradote na idade, e na cabeça via-se ainda um tufo de cabelo mais do que suficiente para arriscar um penteado de risco ao lado como os que usavam os galãs na época. Já ela era o oposto dele, não porque tivesse peladas na cabeça ou usasse um penteado sem risco, mas porque se apresentava mais jovem e descontraída, esforçando-se por disfarçar que, sob o vestido de tule que albergava o corpo de uma mulher imatura, tinha as pernas a tremer da comoção mas que apesar dos constrangimentos lá foi conseguindo esconder de toda a gente menos de mim.

Não precisámos de bater para as portas se nos abrirem de par em par, revelando as entranhas de uma casa que vista da rua não precisava de obras, tal como as que víramos antes. Era uma vivenda de dois pisos com portadas nas janelas e uma enorme varanda sobre a entrada que servia de alpendre para abrigar quem quisesse fugir da chuva. Fomos diretamente para a sala com lareira de canto onde dominava ao centro uma mesa retangular cercada por uma dúzia de cadeiras de costas altas onde estavam sentados os dois meninos primos da minha namorada, que se levantaram assim que nos viram. Estavam vestidos de igual mas ainda que desconhecesse, não diria tratarem-se de gémeos visto que um deles era mais alto e magro e nem sequer eram parecidos. As feições do mais baixo indicavam algum desagrado, talvez motivado por não ser elegante como o irmão e estar farto de que em casa constantemente os comparassem, dando este como exemplo.

Vieram-nos falar e depois retomaram os seus lugares em silêncio, andando de costas direitas como se fossem soldados a desfilar numa parada, para logo de seguida olharam-nos com desconfiança enquanto sussurravam qualquer coisa em surdina. Era como se fossem as visitas naquela casa as responsáveis por serem sempre obrigados pelos pais a terem boas-maneiras à mesa ou a portarem-se bem diante dos convidados.

Teriam ambos, no mínimo uns dez a doze anos, mas com a nota zero dada por mim no comportamento, portavam-se como se tivessem menos de metade. O mais alto, sorriu com ar trocista quando a tia da minha namorada sugeriu que nos sentássemos afastados um do outro, à distância mínima das extremidades da mesa por entender que nos lugares à cabeceira é que deviam sentar-se os convidados de honra. Olhei para ela, que por ter a profissão de Educadora de Infância, sabia lidar melhor do que eu com as situações em que aparentemente as crianças é que levavam vantagem, mas assim fizemos e acabámos por desfrutar de uma belíssima refeição acompanhada de um vinho que me subiu à cabeça antes de passarmos ao sofá para tomar café. Estava serena, como se dali para a frente eu controlasse os acontecimentos e, sabendo que podia confiar em mim, nenhum mal lhe pudesse acontecer. À contraluz da janela que estava do seu lado, admirava a silhueta perfeita em que, se até àquele momento nenhum outro rapaz reparara, só podia ser por ela tê-los sabido manter na ignorância enquanto esperava por mim. O olhar evidenciava uma paz de espírito, de que a maior parte das pessoas talvez apenas tivesse ouvido falar e se mais amiúde eu não lho confessava era porque, em tais ocasiões, surpreendendo-me de olhar estarrecido na sua beleza, resolvia calar-me com um beijo que me baralhava dos pés à cabeça, de tal forma que não sabendo sequer de que terra era, muito menos podia saber em que Idioma falavam para me poder exprimir e fazer entender.

Após o almoço, despedimo-nos da família e fomos andar juntos pela calçada, antes de regressarmos de carro a casa. Levou-me a conhecer o jardim, e terminámos à porta do Museu Municipal, onde estão patentes exposições permanentes de elevado interesse, entre as quais se conta a maior coleção ibérica de fósseis de dinossauros do período Jurássico Superior e uma das mais importantes a nível mundial. Dali partimos à descoberta do ex-líbris concelhio que é o Padrão Comemorativo da Batalha do Vimeiro, erguido onde o exército Anglo-Luso derrotou as tropas invasoras às ordens de Napoleão, comandadas pessoalmente pelo general Junot em Agosto de 1808 no decurso da primeira Invasão francesa.

Confesso que avistei as marcas por onde andámos, mas não os aclamados dinossauros que, para terem deixado no terreno pegadas tão grandes como as que vi naquele dia, deviam ser bichos assustadores, de proporções tais que fariam deles, nos dias que correm, seres mediáticos. Teriam orelhas maiores do que as de um elefante africano, e embora pudessem não ter a agilidade de um felino, gabar-se-iam de possuir dentes mais afiados do que um tubarão ou de ter o peso superior ao de uma baleia. Não os vi ou então não os distingui da paisagem que deve ter mudado muito desde o período Jurássico, mas sempre oscilando entre o campo e a orla costeira que aqui e acolá se fundem como as tradições dos diversos povos que vieram habitá-la. Contudo, não veria nem que eles tivessem passado por mim tão perto que até pudesse detetá-los pelo olfato, mesmo não sendo ele tão apurado como o de um cão de caça.

Não vi tais seres nem podia ver, porque caminhava ao lado da minha namorada e quando estou com ela não tenho olhos para mais nada! É tão linda e ama-me tanto, que se a perdesse, mais facilmente me cruzaria pelas ruas com um exemplar vivo dessa espécie extinta há milhões de anos, do que com outra mulher que estivesse à altura de substituí-la.