O genocida altruísta

“1.999.999.999 pessoas tomaram já o antídoto, os necessários, ou para utilizar a terminologia que usamos nas nossas reuniões secretas, os “adequados”. Claro que na sua grande maioria sem o saberem, porque haveriam de saber se não existe qualquer epidemia que os ameace, mas eu sei que ela existe porque a tenho na mão.
Nesta mão, onde tenho literalmente o poder de matar um mundo para salvar outro. Um mundo certamente diferente no final do dia. Nesta mão, que tornará Hitler ou outro qualquer genocida numa nota de rodapé na história mundial.

Não sei como cheguei a este ponto, fui um jovem normal, talvez até idealista um dia, aquilo que vocês poderão apelidar dum tipo porreiro, que noutro dia fez a terrível escolha de se tornar cientista, e em dias seguintes, tomou escolhas que o foram aproximando deste local onde me encontro, onde terei que tomar a mais difícil escolha que algum dia, algum ser vivo já tomou na face desta terra.

Como falarão de mim? Será que irão saber que fui um filho preocupado com a saúde dos seus pais, que ajudei o meu amigo a pagar as suas dívidas de jogo sem nunca ter pedido nada em troca, ou até, será que algum historiador mais meticuloso descobrirá que um dia, este mesmo genocida, o conhecido genocida da raça dos “excedentários”, roubou em casa para ajudar as crianças mais pobres da sua idade a conhecerem o sabor do chocolate preto? Provavelmente, mesmo que descubram, será sempre um sinal da
minha expectável falta de princípios, talvez considerada inata, que culminou no ser que todos conhecerão no futuro.

Cristo, Alá, Gaia! Apelo a qualquer divindade na qual nunca acreditei, por favor, provem a minha ignorância, provem a minha arrogância ao renegar-vos a todos, castiguem-me por ela, mas mostrem-me o caminho, demonstrem-me a vossa misericórdia, o vosso poder, a vossa inteligência. E eu prometo-vos, que o mundo todo saberá que um de vocês existe, e nos curvaremos para a eternidade perante ELE.

Que digo eu? Que caminho poderia existir? Se já quando éramos apenas sete biliões de pessoas no mundo, muito dificilmente, renegando a todas estas mesmas religiões, aos seus princípios, às suas histórias, à moral inventada pelos homens, não haveria caminho alternativo.
Sim, é isso, não há outro caminho, vou apertar com força o frasco, vou libertar esta força invisível ao olho humano, que o atacará sem aviso, sem misericórdia. Que culpa tenho eu quando não tenho outra opção?

NÃO CONSIGO! De que vale salvar o ser-humano da extinção, se acabo com a humanidade ao fazê-lo?
Ninguém estará cá para lembrar, mas eu e os outros saberemos, no momento final, que apesar dos erros, apesar da pressão, apesar das atrocidades cometidas, nós preferimos morrer a abdicar da nossa humanidade.
Sim, este vírus mortal, que iria liquidar os excedentários, que iria reduzir o número de seres-humanos no planeta ao nível adequado, que iria fazer o papel do bom senso demográfico inato no mundo animal, mas que o nosso mundo dito racional nunca teve a humildade de receber os seus valiosos ensinamentos por arrogância, não será aberto. Não, nunca, jamais… serei eu a voz da razão, serei eu o último grande homem deste planeta, que não vacilará, que terá a coragem de dizer: “se sucumbirmos, iremos sucumbir unidos, com a nossa humanidade intacta”. E a humanidade em uníssono irá lembrar-me enquanto viver, como o seu bastião.

Pensamento romântico, não é? A verdade é mais nua, mais crua, mais biológica. Porque quando os mesmos que foram poupados hoje, estiverem com fome, sede e na mais completa agonia. Será que terão vontade de me aplaudir? Será que ao verem os seus filhos e netos sucumbirem à fatalidade planetária deixarão de criticar, culpar, ou até, odiar a minha cobardia?

Por isso, libertei o vírus assassino, é a minha obrigação, não tomei, nem tomarei o meu antídoto, entregarei propositadamente a um “excedentário” o mesmo. Àqueles que salvei, não censuro o vosso ódio contra mim, talvez vos tenha retirado mais que aos outros. E se esse ódio vos ajudar a recuperar alguma da humanidade que vos retirei, tenho esperança que me ajude a mim também, porque passarei as poucas horas que me restam nesta Terra a odiar-me!”

Pergunta final: Vilão ou salvador?