O Grande Cavaca

Dizer que toda a gente gostava dele é pouco, quando se trata de falar do Cavaca e, pró caso de ter de resumir numa frase, o percurso de vida de modo a figurar numa lápide à vista de todos. Quando queremos homenagear um amigo, de quem nunca se ouviu dizer que preferisse a pompa das palavras à da circunstância de reencontrar os amigos e passar alegremente com eles uma tarde a confraternizar, por entre uma pilha de cervejas que acumulava à medida que o tempo passava.

Chamava-se Jorge, e de seu nada tinha, além da tradição de coragem do nome e de sabermos que, de acordo com as suas origens, representava uma estirpe de homens nascidos na planície alentejana, que pela valentia estavam aptos a pegar pelos cornos, qualquer touro de lide que da lezíria ribatejana pudesse surgir pela frente. O apelido era Cavaca, como o doce que na gastronomia ocupa um lugar especial por levar a visitar as Caldas, mais gente interessada em saboreá-lo, do que em conhecer as fábricas de cerâmica responsáveis pelo envio de tantos Zés Povinhos de Portugal para o mundo.

Tinha um caráter alegre, mantendo-se uma criança feliz, embora não lhe faltassem oportunidades para crescer tornando-se um adulto enrugado de aspeto sisudo. Viveu cinquenta e cinco anos, mas tantas foram as experiências vivenciadas, que dir-se-ia estar à beira de completar pelo menos um século de vida.

Formado na escola da vida, foi aprendiz de muitos ofícios e chegou a ser camionista de longo-curso, na trajetória de liberdade que o levou a conhecer muitos países, nos quais observou maravilhas, mas de onde regressava convicto de que feliz era verdadeiramente no seio de familiares e amigos. Vivia com a mãe e o irmão, numa vivenda geminada, com quintal nas traseiras que dava para um limoeiro, à mistura com oliveiras perto dumas hortas aonde íamos roubar tomates. Foi talvez aí que experimentou uma sensação de liberdade, bem diferente da falsa noção de segurança que conferiam as substâncias tóxicas que veio a experimentar mais tarde.

Sempre o conheci audaz e corajoso, de gestos nobres como a personagem dum romance, que abdica dum final feliz em favor do rival que é quem termina satisfeito nos braços da amante. Por isso, tenho-o na conta duma pessoa de bem, e para mim guardo a imagem desse rapaz simples, de mediana compleição física, nada condizente com a grandeza gigante do seu caráter.

Habituei-me a ouvir o nome dele nas advertências da professora, a culpá-lo da desatenção dos colegas que nas aulas apenas prestavam atenção ao que ele dizia. Tinha dez anos e, já nessa altura, deviam achá-lo atraente as meninas, que dos restantes rapazes perdiam a vontade de se aproximar, se antes o tivessem observado com atenção. Não era alto, mas atingia um patamar elevado de consenso o seu sorriso contagiante e só lhe faltava perfumar-se para darem ênfase ao boato de que eram atraídos pelo cheiro, tantos colegas que prontamente se juntavam em seu redor.

Teve relações e relacionamentos afetivos com pessoas de quem cuidou em momentos em que necessitavam da presença física de um anjo. E, todavia, viveu intensamente, embora não isento de cometer erros que, a qualquer um, afastariam definitivamente da imagem de Santo.

Viveu intensamente, não tantos anos como gostaríamos, mas seguramente muito menos do que os que serão necessários para cair no esquecimento. Considero que, fruto duma assinalável generosidade, o amigo Cavaca integra uma lista de personagens com o raríssimo condão de nos iluminar, como se fosse através do raio de luz dum farol colocado no espaço, em órbita dum planeta a que se sobe numa largada de balões, e tal qual este em que vivemos, mas sem os defeitos causados pela ação do homem.

FIM

Obs.: No dia do funeral, defronte de casa, os amigos juntaram-se e à noite fizeram uma largada de balões.