O Mercedes190. O Eduardo Sant´Ana. E o Miranda – André Marques

A vida tem dado alguns afazeres. A mim. E a tudo aquilo que gira à minha volta. Ou ao volante. E ainda bem. Ou não lhe chamaria vida.

Rodeiro. O meu Mercedes 190. Que sabe a mel quando me dói a garganta. E a chocolate branco quando me sinto guloso. O meu calhambeque carregado de quilómetros. De água aquecida. O ar condicionado a polvilhar-me as sobrancelhas. O teto de abrir a colocar-me acima dos dois metros. O meu Mercedes 190. O meu sofá Chaise Long tranquilo, acolhedor. Da sala. A minha máquina de guerra. Uma mixórdia de parecenças. Um baú repleto de coisas antigas. Assim é o meu Mercedes. Ou aquilo que sei dele. E ele de mim.

Fábio Miranda. Eu. É com esta versão que quero partir. Para onde, ainda não sei. Não sou adepto do futuro. Apenas conheço o presente, de vista. É com esta versão, de olhar feito rio rasgado, que quero transmitir aos meus netos que a vida pode ser simples. Pode e deve. Com ou sem Mercedes. Os netos. Espero vê-los crescer. Tal como os meus avós me viram. E continuam a ver. Não graças à vida, mas à vontade de se manterem por cá. Há quem afirme que os Mercedes só acabam de elaborar a rodagem quando atingem mais de um milhão de quilómetros. Que seja. Por enquanto estou entregue ao conforto, à fiabilidade, à imagem e à inovação. Eu e mais de três milhões.

Não carrego nos erres. Aqui em Setúbal. Coisas de Franceses. Dizem. Aqui, na terceira cidade portuguesa.

A beleza não é contraditória. Nunca é. Não obedece a uma ordem específica. Ou é belo. Ou é belo. Na minha modesta lista de palavras, o interior de uma mulher é sempre mais estimulante que o seu exterior. A beleza reside no espírito de quem a contempla. Calma. Serena. A simplicidade da perfeição. A beleza sedutora da mulher que todos os dias me faz sorrir como se fosse a primeira vez. De tudo. A Filipa.

Avistei-a pela primeira vez no coração verde da cidade de Setúbal. O jardim do Bonfim. Não ligámos. Mas foi amor à primeira vista. E à vista de todos. Senti-me diferente. Que já a amava antes de tudo. Antes de todos os olhares. Antes de todas as atrações.

Era primavera. O quarto mês do ano. Abril. De um ano que não importa. Levei-a à Baía de Setúbal. Baía de peito feito. Virada para a Arrábida. Vislumbrámos o Portinho da Arrábida. A Pedra da Anixa, encostada à costa. O ex-libris da cidade de Setúbal. E ainda o habitat natural do roaz-corvineiro, uma das nonas comunidades nómadas de Golfinhos na Europa.

Quando a noite caiu, bebericámos o renomeado vinho licoroso de origem regulada em Azeitão. O Moscatel. Que escorrega melhor que muita gente. E sabe bem. Brindámos. Presenteámos as praias veladas pela Serra da Arrábida. Faltou-nos o mergulho. Esse, preferimos realizá-lo na cama, debaixo dos lençóis, ao sabor do quente. Do corpo.

A Filipa adora degustar um bom peixe. É grande apreciadora de bebidas espirituosas. E do queijo. E das sardinhas assadas com batatas cozidas e salada de alface. Temperada com azeite e vinagre. Divinal. Assim como a música moderna, que acompanha o salmonete gralhado temperado com molho feito de fígado de peixe. E eu o choco frito. Para sobremesa, beijamos as queijadas. Com os lábios sedentos. Ou as tortas. Ou os esses de Azeitão.

  •  O Mercedes 190. O Eduardo Sant´Ana. E o Miranda. Bebo-lhe o sangue das entranhas. Deixo-me enganar. Cadela amansada. Amo-o por dentro das madrugadas. Consumo-o por dentro dos dias frios. O meu aquecedor. E deixo-me enganar. Mais uma vez. Um brinde ao Miranda.

No meio de tantos entretantos, existe ainda o Eduardo Sant´Ana. A voz acalentada por todos os Portugueses. E além fronteiras. Oito músicos. Duas bailarinas. E os êxitos Cartas de amor, o imponente Mocidade, ou o mais recente Não me sai da cabeça. Eduardo Sant´Ana. Com as entradas todas. Com o ar sedutor que lhe é caraterístico. E Portugal inteiro. O todo poderoso com todas as músicas na ponta da língua. E da alegria. Das suas músicas. Inclusive eu. Quando vou ao Café Coroa, de vidro aberto, com o braço esquerdo de fora, a mostrar o aventureiro que sou, sem o ser. Na Avenida 5 de Outubro.

  •  “Não importa qual é a língua/ Se é Espanhol ou Italiano/ Se é Francês ou Inglês/ Por acaso a nossa música é cantada em português/ Está comigo dia e noite, estando ou não ao pé de ti/ Esta música é tão linda, e a prova deste amor dedico a ti.”

E devoro o melhor bitoque do mundo. E arredores. Na 5 de Outubro.

Ao final da tarde, já quase a escurecer, dirijo-me ao Parque da Algodeia. Raptar a Filipa que adora fazer exercício físico nas máquinas disponíveis. Já mais magra, levo-a ao Parque de Vanicelos. Respiramos o ar fresco. Vislumbramos as crianças no parque infantil. E imaginamos as nossas. Um dia quem sabe. Porque a vida é feita de seguimentos. Porque a vida é uma geração constante. Porque nada existe sem um acontecimento anterior. Bebericamos um café no Café Bar, enquanto observo as pernas giras dos rapazes que brincam no Campo de Ténis. Todos nós temos segredos. E o meu é dar para os dois lados. Acasos da vida. Por fim, e depois de todas as olhadelas, de todos os beijinhos, de todos os abraços, saímos pela estrada da Baixa de Palmela. Seguimos até casa, no Bairro do Liceu. No caminho, avistamos a praia de Galapos, Galopinhos e o Portinho da Arrábida. E adoramos. Como sempre.

A minha vida é uma aventura. Por Setúbal. Por Portugal. A iniciar pelo casamento. O meu. E o casamento é a maravilhosa viajem singular ao encalço dos covardes. E afinal, a vida não é uma aventura. São várias aventuras. Néscio que sou.

Ás vezes precisamos de sair do nosso cantinho, da nossa área de conforto, aventurarmo-nos para nos descobrirmos. Como eu, quando decidi afundar-me na Filipa. A tentar enganar-me. A imaginar que idolatro todas as pernas femininas. E todas as mulheres. O machão de serviço que nunca está a trabalhar.

A ti, Filipa. Tens a beleza. A pureza. E a sabedoria. Ou não serias minha mulher. Morena. Cabelos negros, esmagados pelo vento. Sempre tu mesma; absurda, fogosa, com os sorrisos todos. Ou não me enganasses tu. A gostar do mesmo que os teus homens gostam. Eu. O Mercedes. O tal desde o começo disto tudo. Azul bebé. Até ao fim.

  • Mirandinha. O homem das sete maravilhas. E eu a oitava. Os sete homens que já passaram. Não por mim. Por ele. Calo-me bem caladinha. Como fazem os gatos quando produzem asneira à tonelada. Sem pensar. Ou como o leite estragado, que azeda sem aviso prévio.

O homem que sou. O caráter que construi. Exterior ao meu ser. Alguma coisa devo ser. Uma zebra com cabeça de chupa-chupa. Um javali mal armado. Uma raposa com um corno.

Toda a minha inquietude soa a mudança. Nada me deve ser imputado. Ou nada me deve ser oferecido. Um significado. Um acepção.  Entretanto, os cães passam. E ladram. E alguns mordem.

Circula em mim o sonho. A pujança do desejo carismático. O medo. O terror. O misticismo. Os pensamentos passam por mim, velozes. Mordazes. Pelo meu cérebro, que dorme inúmeras vezes, à espera de algo que ainda desconheço.

Odeio os fins e os começos. Porque me sinto uma linha contínua. Porque odeio que a ordem natural das coisas tenha uma solução plausível.

Não sou mais que ontem. Menos que amanhã. E agora não sou nada. E tu, Filipa, serás sempre aquilo que sonhei. Sobre todas as coisas. Sobre todas as vidas.

AndréMarquesLogoCrónica de André Marques
Crónicas Improváveis
Visite a página do Facebook do autor: aqui