O Mundo da Desconfiança – Carla Vieira

Cinco minutos antes de começar a escrever a crónica desta semana, queixei-me ao meu homem que não tinha assunto nenhum para falar. Pura e simplesmente, a minha vida tornou-se mundana e estava-me a faltar aquela pequena chama que me faz abrir um documento no Word e escrever sem parar. E enquanto me queixava e pegava nas luvas para limpar a cozinha, ouvi a campainha tocar.

Antes de esticar o assunto, é preciso saber que quem vive cá em casa tem um código, um determinado número de vezes que temos de tocar à campainha para as pessoas dentro de casa saberem que é família que está a querer entrar. Isto significa que quando alguém que não é da família toca à campainha, automaticamente sabemos que não é alguém de confiança e por isso vamos ver quem é antes de abrirmos a porta.

E saber isto é importante para a história porque quem tocou à campainha não era de cá de casa, por isso eu fui ver de quem se tratava. A pessoa deixou a minha casinha em paz e foi tocar às outras vizinhas, e eu aproveitei para fechar as persianas… o que foi uma estupidez porque a mulher apercebeu-se e veio a correr tocar à campainha durante dez minutos.

É assim: eu vivo num sítio calmo e silencioso. Tenho cuidado de não pôr música alta quando estou sozinha ou colar-me às janelas, atender o telefone se por alguma razão o número for suspeito ou abrir a porta a quem quer que seja que apareça, especialmente pessoas estranhas e bem vestidas com pranchetas na mão. Porque desculpem-me, de todo o tipo de gente que toca às campainhas, essa gente que escreve coisas parece-me o tipo mais perigoso.

Desde que era pequena mas “grande” o suficiente para ser deixada em casa sem supervisão que os meus pais me avisavam para as mesmas coisas: não atender o telefone, não abrir a porta, não perguntar “quem é” se alguém bater, não dar a entender que estou sozinha em casa, fechar as persianas quando estiver escuro. E eu sempre o fiz. Depois comecei a olhar para as pessoas a caminho da escola para casa, comecei a reparar quais as pessoas que apareciam no mesmo sítio à mesma hora, as que pareciam amigáveis, as que pareciam estranhas. Agora quando saio do emprego à noite nunca ponho os phones nos ouvidos para poder ouvir o que se passa à minha volta. Ando depressa, olho para os passeios do outro lado da rua, desvio-me de grupos de pessoas e olho para as sombras no chão caso esteja alguém atrás de mim. Não vou de A a B sempre pelo mesmo caminho para evitar que alguém note um padrão (aprendi isto depois de ser assaltada). Cada vez tomo mais cuidado porque cada vez o mundo é mais assustador e mais coisas más podem acontecer a raparigas da minha idade sozinhas à noite.

Não gosto de andar em eterna desconfiança. Sinto-me privada da beleza da cidade quando estou demasiado preocupada em não passar por ruas desertas com receio de aparecer nas notícias da noite por me ter acontecido alguma coisa. Não gosto de ter que me afastar de pessoas desconhecidas e mendigos, nem gosto de ficar sempre desconfiada quando batem à porta. Este tipo de mundo em que vivemos dita que toda a gente tem de ter cuidado com tudo porque “nunca se sabe” e todas as semanas há relatos de pessoas que desaparecem sabe-se lá como. É um sistema complicado, este. Não devia ser assim.

Eu sei que se no mundo não houvesse maldade nenhuma, viveríamos numa utopia; como toda a gente sabe, no entanto, utopias não existem. Mas não nos impede tentarmos lá chegar. Eu gostava de me sentir um bocadinho mais segura. Gostava de não ouvir tantas notícias más de desaparecimentos e mortes porque alguém se desviou do caminho.

Pode ser que um dia cresçamos todos intelectualmente e ninguém tenha medo de ir à rua. Até lá, só posso esperar estar a fazer todos os possíveis para continuar a chegar a casa todas as noites sem nada a preocupar-me.

Tenham uma boa semana!

Crónica de Carla Vieira
Foco de Lente