O Natal desconhecido – Bárbara Borralho

É estranho e sinceramente não entendo tudo isto. Esqueci-me de como cheguei até aqui e de como me sentei neste banco gelado coberto pelo orvalho. Está frio e consigo ver a minha respiração materializar-se à frente dos meus olhos. Ao longe ouço carros e vejo luzes de diversas cores estenderem-se pela cidade inteira. Fico a admirá-las por instantes e quando fecho os olhos passam-me mil e uma coisas pela cabeça. E então dou por mim num outro tempo, numa sala cheia de gente enquanto me sento à frente de uma lareira, com os braços cruzados junto ao peito e um ar carrancudo no rosto, com umas meias de lã pousadas no colo. Ouço gargalhadas, músicas e o som tão característico de papel a rasgar-se mesmo à minha beira. De repente os meus lábios formam um sorriso e os meus olhos brilhantes fazem esquecer as luzes da árvore de Natal; liberto os braços do sufoco da minha indignação e corro a abraçar a prenda que tanto queria.
Abro os olhos, continuo sentada no mesmo banco. O céu continua pintalgado de pontinhos brilhantes e é nesse momento que me pergunto porque são precisas luzes e enfeites quando temos sobre nós uma magia muito maior do que qualquer coisa. Não entendo e não tenho vontade de descodificar esse mistério. Nesse mesmo instante passa por mim uma menina com o cabelo a tentar fugir do gorro e as mãos envoltas numas luvas vermelhas. Por momentos fica a olhar para mim com alguma curiosidade. Depois senta-se à minha beira e, como não chega muito bem com os pés ao chão, fica a abanar as pernas para a frente e para trás. Olho para ela e dou-lhe um sorriso que ela me retribui prontamente. Desvio o olhar novamente para as luzes e ouço-a remexer os bolsos. Quando tento ver o que ela está a fazer dou com a mãozinha dela estendida para mim com um pequeno rebuçado de invólucro vermelho. Aceito-o e volto-lhe a sorrir. E enquanto desembrulho aquele plástico volto novamente a ver-me num outro lugar, com uma mão cheia de rebuçados e outra de plásticos vazios. Ergo um desses plásticos até aos olhos e o mundo pinta-se de vermelho subitamente. Começo a rir-me às gargalhadas porque dou por mim a mandar na paisagem. E, novamente, volto à realidade e os meus lábios continuam tão selados como antes e as minhas mãos tão frias como estiveram toda a noite.
Passado algum tempo a menina levanta-se e acena-me. Tiro uma mão do bolso e retribuo-lhe o gesto. Vejo-a a ir ter com a mãe que a espreitava pelo vidro do café. Assim que a menina lá volta a entrar, vai ter com a mãe e fica a apontar para mim a sorrir. Volto a focar a minha atenção nas luzes e percebo que tudo está diferente. Já não sou eu que tenho os bolsos cheios de rebuçados e um gorro enfiado insistentemente até às orelhas. Já não sou eu que desembrulho as prendas e já não ficaria amuada se recebesse um par de meias de lã. Olho para as minhas mãos e percebo que cresci e que estou diferente. Já não preciso de prendas ou de uma árvore bem enfeitada. Contento-me com a minha família, com os bons amigos e com todas as pessoas especiais que tenho todos os dias comigo.
Ainda a olhar para as minhas mãos reparo no plástico do rebuçado. Levanto a mão à altura dos meus olhos e coloco o plástico à frente de um deles. O mundo transforma-se e pinta-se de vermelho. Solto uma gargalhada e sei que há coisas que nunca mudam. Pode perder-se a magia, o mistério e papéis espalhados pelo chão mas enquanto tiver memória consigo viver esta época todos os dias vendo-me a mim própria de olhos brilhantes, com um gorro vermelho na cabeça, sentada no chão, a remexer os bolsos à procura de mais rebuçados.

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