O presidente que, aparentemente, não é de todos os portugueses

Todos vimos, em directo ou depois referenciado pelos media, as declarações do Presidente da República ao anunciar a sua decisão de indigitar Pedro Passos Coelho como primeiro ministro. E, como eu disse antes, nada que não se esperasse porque a tradição democrática é dar posse a quem ganhou. O alcance prático dessa decisão, sabendo que há uma maioria parlamentar que pode fazer cair esse governo a qualquer momento, é questionável, mas já me referi a isso antes, não o vou fazer esta semana.

O que não é, em meu entender, correcto é que o Presidente da República Portuguesa, cuja função é representar todos os portugueses, diga claramente que partidos que não advogam pela presença do nosso país na União Europeia, união monetária e bancária e na NATO, não podem ser parte de um governo democrático. O poder de decidir isso cabe aos portugueses, não ao presidente.
Segundo o site oficial dos resultados das eleições, 996 872 portugueses escolheram votar nos tais partidos (falando só nos com assento parlamentar, porque mais havia) que se podem chamar de “eurocépticos.” Estes votos elegeram 36 dos 230 deputados da Assembleia. Estes votos valem menos do que os outros? Claro que não.

Quem conhece a história de Aníbal Cavaco Silva enquanto primeiro ministro não ficará, certamente, totalmente surpreendido. Também nos anos 90, nas famosas manifestações que ficaram conhecidas como o “Buzinão da Ponte [25 de Abril]” e “Secos e molhados, policias contra polícias”, o então chefe de executivo não acreditou que os portugueses pudessem estar genuinamente descontentes com o governo e declarou mesmo que estas acções teriam sido organizadas pelo partido comunista e extrema esquerda. Podem até ter sido apoiadas por aquelas forças politicas, mas é óbvio que nenhuma daquelas centenas de pessoas que ali estiveram estavam ali por obrigação mas sim por se sentirem injustiçadas relativamente às decisões do governo cavaquista.

Aníbal Cavaco Silva que, enquanto primeiro ministro, comia bolo rei de boca aberta para não ter de responder aos jornalistas e dizia que nunca se enganava e raramente tinha dúvidas, foi o mesmo que, enquanto presidente garantiu aos portugueses a estabilidade do BES, tendo o banco caído menos de 1 mês depois, foi o mesmo que sempre suportou a necessidade da austeridade no governo de coligação, mas disse que a austeridade tinha chegado ao ponto de não ser mais suportável na legislatura anterior, e foi o mesmo que disse que queria uma solução governativa estável agora, mas agudizou ainda mais a luta parlamentar ao abusivamente indicar que dois partidos, que mereceram a confiança de 18,44% dos votos nas últimas eleições não podem participar de uma solução de governo.

A Constituição da República Portuguesa diz que cabe ao Presidente indigitar o primeiro ministro, tendo em conta os resultados eleitorais e depois de ouvidos os partidos com assento parlamentar. Não lhe dá o direito de escolher que votos valem mais do que os dos outros. Não lhe permite abertamente apelar à ruptura no grupo parlamentar do maior partido da oposição. Não lhe dá o direito de dizer que, mesmo que os portugueses votem livremente no partido que quiserem, certos partidos, devido aos seus programas, nunca farão parte do governo. Essa não e a função de um Presidente da República. A soberania, diz a Constituição, reside no povo, não no Presidente.

Crónica de João Cerveira

Este autor escreve em português, logo não adoptou o novo (des)acordo ortográfico de 1990