O que queres ser quando cresceres?

Antes de começar a minha crónica desta semana, desejo a todos os meus estimados leitores um fabulástico e mágico 2016. Espero que concretizem os vossos sonhos, sempre rodeados de muita paz, saúde e amor acima de tudo.

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  Um Ser Humano é livre de escolher a sua profissão. Seja por motivação pessoal, económica ou simplesmente consequência de um destino mal planeado, a maioria de nós exerce uma profissão por grande parte da vida adulta.

  Alguns crescem com a certeza do que querem ser, outros criam uma carreira em algo que não haviam considerado, outros estão simplesmente insatisfeitos. Encontramos de tudo. Existem porém, na minha humilde opinião, profissões que não servem para todos, profissões essas que até há pouco tempo julgava virem daquilo que somos como pessoas, como seres humanos. Até há pouco tempo acreditava que, no meio de um mundo virado de pernas para o ar, alguns marcavam a diferença… Enganei-me.

  Quando decidi ir para Psicologia, além de querer “resolver” as minhas questões, queria também poder entender o ser humano de uma forma que muitos não conseguem. Queria “ler” o ser humano para além do que está à vista, queria fazer a diferença, ainda que ténue, na vida de quem precisa. Nunca em momento algum considerei seguir Psicologia Clínica. Achei ser uma responsabilidade imensa. A ideia de virem até mim pessoas em condições deveras frágeis era de grande responsabilidade… e se não as pudesse ajudar? E se ainda as deixasse pior? Não era para mim. Por isso optei pela área Forense. Além da paixão pelo menos habitual, por aquilo que geralmente a maioria prefere ignorar, considero que as minorias que a área Forense abrange são já por si o limite do risco, sendo assim, maiores as probabilidades de poder fazer algo positivo. Nela incluo idosos, vítimas de exclusão, que vivem no isolamento, crianças em risco, vítimas de abusos físicos e psicológicos, doentes terminais, reclusos, sem-abrigo, minorias étnicas… Enfim, aqueles que, muitas vezes, a sociedade prefere ignorar. O Psicólogo forense não tem um gabinete bonito onde recebe quem precisa. Como dizia uma professora, os psicólogos forenses são todo-o-terreno, andam nas ruas.

  Infelizmente, não é nesta área que trabalho hoje, e provavelmente nunca trabalharei mas, recordo-me bem dos seres humanos fantásticos que faziam parte do meu curso, quando o iniciei. Eram e são pessoas focadas no outro, que optaram por psicologia não para ganhar dinheiro, mas para fazerem a diferença na vida dos outros, porque acham que têm algo a dar. O mesmo não posso dizer, infelizmente, quando regressei à faculdade alguns anos depois, tendo percebido que agora, muitos daqueles futuros psicólogos tinham outras prioridades. Agora a ideia era abrir um consultório e fazer dinheiro (claro que não são todos assim, mas estão em maior número do que estavam há quase 10 anos atrás). Isto atormenta-me… A ideia de que alguém vulnerável, no auge da sua fragilidade possa bater à porta de alguém que não se preocupa com nada a não ser o seu umbigo e os zeros da sua conta bancária. Que seres humanos temos vindo a criar e educar? Que seres humanos estamos nós a formar?  Para mim, a Psicologia mudou a minha vida. Mudou a forma como via os outros, o respeito que tenho por muitos que antes desprezava (apesar de ainda manter o desprezo por certas espécies raras de pessoas).

  Se falo daqueles que “tratam” a mente e o bem-estar psicológico, o que posso então dizer daqueles que tratam do físico? O que posso eu dizer dos enfermeiros e médicos? Para se ser médico, além das elevadíssimas médias necessárias e largos anos de estudo, que tipo de ser humano precisamos ser? Estaremos nós rodeados de médicos que optaram por esta profissão para terem carros de luxo, uma vida desafogada e status? Porquê que um ser humano decide seguir medicina? Não é o sonho de um médico salvar vidas, tratar, curar de outro ser humano? Ninguém segue medicina ou enfermagem porque não tem alternativa. São profissões que exigem trabalho, empenho, dedicação, VOCAÇÃO!

  Ao escolhermos profissões em que a vida dos outros está nas nossas mãos, seja de forma imediata e direta ou não, não estamos obrigados (para connosco como indivíduos) a sermos responsáveis, profissionais e dedicados? Não “assinamos” internamente um compromisso ético? Onde está a ética? Onde está o valor pela vida humana? É uma má gestão política ou um mau salário que dita aquilo que somos e a forma como exercemos a nossa profissão? É o nosso saldo bancário que dita como iremos tratar o próximo?

  O caso do David não é infelizmente o único, é mais um. Não servirá de nada ao David ou à sua família e amigos que mudem agora. Poderá eventualmente salvar os próximos “Davides” mas, e aqueles para os quais já é tarde demais? Quanto mais os dias passam, mais sombria se torna a realidade, de que existiam mais hospitais que lhe podiam ter salvado a vida, de que se mudaram processos, se criaram equipas, de que havia muito que se podia ter feito.

  Pergunto-me, que seres humanos são aqueles que, durante aquele fim de semana trabalharam e acompanharam o caso do David com tamanha indiferença. Que não se indignaram, que não se preocuparam em fazer algo. Significa que se tivermos um acidente de viação, um ataque cardíaco, um AVC, um aneurisma, o que seja, se por ventura for sexta-feira e não houver um especialista, estamos condenados? Isto, para mim, é homicídio, um homicídio frio, negligente, é um ato criminoso. E pode acontecer comigo, com o leitor, com qualquer um.

  Não acho que se trate de uma questão de insatisfação com salários, acho que se trata de algo muito mais grave e que vai para além das políticas de um país. Não existe ética, não existe valor pela vida humana. Ou seria antes por pertencermos aquelas culturas que julgam e valorizam um ser humano pela sua aparência? Não seria o primeiro… Era por ter orelhas dilatadas e piercings na cara que não era um caso urgente?  Não é preciso ser-se médico para saber o risco e o quão perigoso é um aneurisma, é senso comum. Falo das aparências porque não as podemos ignorar. Ainda há poucos anos foi recusado auxilio a uma tatuadora que foi automaticamente carimbada como toxicodependente  e cuja análise clínica, em vez de ser direcionada para a infeção urinária de que se queixava foi ao HIV, num hospital de  Cascais. Ou ainda o caso de um bebé rejeitado numa creche porque o seu pai tinha tatuagens. E dizem que somos tolerantes. O dizermos que somos tolerantes diz logo tudo. Se aceitarmos algo como natural e como igual não se trata de tolerância. Tolerar é acatar, é consentir ou permitir algo com que não concordamos. É isso que somos? Somos um povo que não insulta nem agride. Uau… mas desprezamos e negligenciamos. O que é pior?

  O caso do David revela-me desprezo pela vida humana, perdeu-se o sentido do que é escolher uma profissão como modo de vida, seguir uma carreira porque ela traduz o que somos. E se agora passássemos a discriminar quem trabalha de bata branca ou verde, ou conduz carros de alta cilindrada? Quando é que vamos deixar de pensar que só quem tem licenciatura e trabalha atrás de uma secretária vale mais do que quem trabalha num supermercado, numa fábrica, numa obra ou como tatuador? Aquilo que aparentamos dita o que somos? E a profissão que exercemos, o que diz ela de nós?

E tu o que queres fazer da tua vida?