O sítio de um certo picapau amarelo

Tatuei um pica-pau amarelo no pescoço que todos os dias de manhã me desperta a cantar para ir trabalhar. Impressiona tanto a quem ouve, que facilmente o confundo com outra ave canora de maiores dimensões, com um pavão de cauda de mil cores aberta como um leque ou um colibri de proporções equilibradas e penas de um colorido variado que nos encanta ainda antes de começar a cantar, sempre que vem cantar-me ao ouvido tão bela melodia como se dissesse que era em minha homenagem e só para mim que o fazia.

Canta como um rouxinol, dizem, o meu pequeno pica-pau de crista vermelha, às vezes de ar acabrunhado como se tentasse compreender por que razão tanta gente pára a ouvi-lo. Já pensei em pedir a um tatuador amigo que lhe desenhasse uma companheira, fazendo jus à fama que ele tem de não descansar enquanto, para todos os animais que encontra abandonados, não arranja depressa uma dona. Uma linda fémea cujas penas mandaria pintar da cor que os meus olhos encantados refletissem ao vê-los juntos pela primeira vez, formando aquilo que eu chamo de um casal perfeito.

Entre os adultos, o meu pequenino pica-pau de mancha branca na base do bico causa tanta admiração por onde tem passado que dos mais variados sítios acorrem a vê-lo pessoas ansiosas por vir a ouvi-lo recitar um poema. Às crianças, apetece mais ouvi-lo contar uma história que, dependendo de no final haver uma linda princesa que casa com o homem dos seus sonhos e é feliz, eu própria confundo com a minha.

E como sempre saímos juntos, deleito-me com ele, deitada ao sol na praia. Ao seu lado de toalha estendida na areia que conforta o meu corpo molhado, ao sol, quase adormeço ao peso da importância que ele tem para mim, bastante maior do que a marca que está à vista de todos.

Mesmo na praia, não me custa, na presença de pessoas que mal conheço, despir-me e expô-lo como a um troféu pela minha coragem. É que ver-me um dia de pescoço tatuado, entrar em casa de semblante risonho como se o pior que alguém pudesse ter-me dito já o tivesse ouvido daquele amigo tatuador quando resolveu à última da hora falar no preço que era preciso pagar, não deixou a minha mãe tão satisfeita como se eu tivesse escolhido gastar noutra coisa que fosse mais do seu agrado o valor de dois meses da mesada que ela religiosamente me dava.

Quando lhe contei o que fizera, mal acreditando desviou-me o cabelo para ver melhor a tatuagem, começando por olhá-la desconfiada, de alto-a-baixo com a mão no queixo refletindo talvez sobre se a ave era adulta e manteria o tamanho ou não passava de um jovem macho que haveria de crescer ainda mais. Seguidamente, tocou-lhe ao de leve com os dedos na plumagem como se receasse assustá-la ainda mais do que fizera comigo e depois vigorosamente pôs-se a esfrega-la com ambas as mãos como se para apaga-la tivesse primeiro que me provocar um hematoma no pescoço delgado ou desmaiada fazer-me cair desamparada no meio do chão. Nervosa, lembro-me de que senti as minhas pernas tremerem e as forças fugirem-se-me como se inadvertidamente as transferisse para aquela avezinha a fim de ela resistir ao ataque de que estava a ser alvo.

Chorei e implorei à minha mãe que parasse, que me deixasse mostrar ao meu pequeno pica-pau caçador de insetos o lado dela mais terno, só comparável ao meu, que podia não ser suficiente para que viesse a querer tatuar o retrato de nenhum dos meus amigos mais chegados onde quer que fosse, mas talvez bastasse para, pelo menos, fazendo uso da boa educação que lhe era característica poder respeitá-los à minha frente.

Durante uns dias a minha mãe mal me falou, mas como sempre retiro alguma conclusão das broncas que ela me dá, entendi que se desse silêncio poderia aferir qualquer ensinamento era o de que se quem cala consente e se quem consentia era ela, não devia dar a mínima importância ao coro de vozes que se juntou aos meus tios e avós para darem razão aos meus primos que, embora gostassem tanto da tatuagem como eu, só concordavam com eles de inveja porque na verdade não se atreviam a desafiar a autoridade nem de uns nem de outros.

Mas superado o problema de adaptação, do meu pequeno pica-pau listado ao seu novo habitat e dos meus familiares à sua presença agora constante, à minha pequenina ave de estimação agradava sobremaneira ver recompensado o seu esforço de tudo fazer para me agradar, com os cuidados que eu passei a dispensar-lhe. Com a mão semifechada em concha, no campo ou na praia eu protegia-o do sol inclemente da hora do almoço, que gostava de passar ao ar livre em vez de me deitar em casa no sofá depois de comer uma sopa incapaz de me saciar, tanto como duas dúzias de tigelas dela se não viesse a acompanhá-las um bom conduto, seguido de uma belíssima sobremesa de chocolate ou postre como dizem nuestros hermanos.

Imagino que no mundo haja inúmeros pica-paus, de todas cores e feitios, tatuados em partes dos corpo mais ocultas e indiscretas do que a minha, mas nenhum de pose tão altiva e tão soberbo como o meu de pequenino bico afiado, que eu na altura não me preocupei em desenhar ainda maior para que não lhe viesse a sobrar em tamanho o contentamento que sinto sempre que o vejo ao espelho ou a alegria que não cabe em mim de sabê-lo tão gracioso e hoje em dia já admirado por todas as pessoas que gostam de mim.

FIM