Nice, França

Onde termina o dever de informar?

“Eu estive a pensar na minha vida, no que vou fazer daqui para a frente, para continuar a aparecer na televisão, para ter trabalho pelo menos durante 1 ano, sempre seguro (…). Então posto isto vou ser pedófilo. Mas só em part-time que eu também não tenho vida para mais”

A afirmação é de Bruno Nogueira num sketch humorístico feito no programa da TVI “O Homem Que Mordeu o Cão” (sim, o mesmo da Rádio Comercial), numa altura em que a comunicação social só falava do caso Casa Pia. No dito sketch, que pode ser visto aqui, Bruno Nogueira usa o humor (muito) negro para brincar com a massiva cobertura que os meios de comunicação fazem destas situações.

E lembrei-me desta situação quando, na tarde do dia seguinte ao atentado com um camião em Nice, França, num programa na RTP1 sobre o sucedido, Felisbela Lopes, Professora Auxiliar no Departamento de Ciências da Comunicação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho e comentadora habitual de imprensa no  Bom Dia Portugal do canal há pouco referido, dizia que é a visibilidade e detalhe que a comunicação social dá a estes casos que faz com que seja ainda mais apetecível a quem queira, à força, por o seu nome na História, levar a cabo este tipo de crimes hediondos.

Até onde pode ir o dever de informar? Onde devem os responsáveis editoriais dizer não a um conteúdo que prejudica segurança e investigação e não é essencial à noticia, apenas acessória? Não sou especialista em jornalismo, mas, na minha opinião, nada justifica repetir as imagens de cadáveres (ou parte deles), algo que consta, segundo várias fontes, que a CMTV fez. Quando a comunicação social divulgou uma imagem do cadáver de uma criança numa praia (salvo erro) grega, foi chocante o suficiente para alertar para o problema da migração no Mediterrâneo. Não foi necessário insistir nas imagens chocantes para alertar para a situação.

Nos relatórios da investigação do atentado de Nice há o testemunho da ex-mulher do homem que levou a cabo o atentado, em que a mesma dizia que, em pelo menos uma discussão entre ambos, ele lhe tinha dito que ela ainda iria ouvir falar muito dele. E assim foi. Depois do atentado, a comunicação social apressou-se a dissecar toda a vida do autor do mesmo.
A questão que volto a colocar é: onde é o limite? Onde está a linha que separa aquilo que o público em geral deve conhecer e o que é acessório? Onde está o filtro entre aquilo que o público deve saber do que quer saber?

A questão é muita muitas vezes colocada, especialmente no que toca à publicação de factos da vida privada de figuras públicas. Uma coisa é o dever de informação e a liberdade de imprensa. A noticia tem e deve ser dada. Mas ir ao encontro do que o público quer saber, sem reservas, leva ao atropelo do direito à reserva da intimidade da vida privada. E, no caso dos atentados, é demasiado chocante para a maioria e motivador para os chamados terroristas, para quem o sucesso da transmissão da mensagem por todo o mundo é sinónimo de sucesso.

Esta é a minha opinião, embora não livre de dúvidas. Reconheço que não sei onde está esse limite. Condeno exageros, mas há muitos conteúdos justificáveis por uns, criticáveis por outros. Mas é para isso que existe uma Autoridade para a Comunicação Social e, caso necessário, os tribunais.

Crónica de João Cerveira

Este autor escreve em português, logo não adoptou o novo (des)acordo ortográfico de 1990