Os Três Mestres Que Partiram Cedo Demais

Todos os meses são especiais, mas uns são mais do que outros. E Abril é, sem dúvida alguma, um mês diferente para os portugueses ou não fosse este o mês da democracia, da independência, da liberdade, da Revolução dos Cravos. E neste país cheio de lutadores o destino por vezes leva para longe de nós homens e mulheres honrosos e dedicados, competentes e talentosos, que deixam saudades a todos nós. E se muito boa gente não tem ninguém a chorar a sua partida, algumas pessoas conseguem colocar um país inteiro de luto. E infelizmente, nos últimos tempos, Portugal tem estado permanentemente de luto. Foi Herberto Hélder, foi o centenário Manoel de Oliveira e, mais recentemente, o saudoso Mariano Gago. Esta é uma crónica repleta de saudade mas, acima de tudo, de elogios para três homens corajosos e lutadores (cada um à sua maneira e na sua área) que deram o seu melhor em prol do país que os viu nascer. Juntem-se ao “Desnecessariamente Complicado” neste hino à liberdade e à democracia e nestas homenagens póstumas!

Comecemos por quem nos deixou mais recentemente: Mariano Gago faleceu na passada sexta-feira, aos 66 anos, vítima de cancro. E só falando do seu percurso percebem a sua dimensão, senão vejamos. Nasceu a 16 de Maio de 1948, em Lisboa e licenciou-se em Engenharia Electrotécnica pelo Instituto Superior Técnico da Universidade Técnica de Lisboa, em 1971. Mais tarde doutorou-se em Física pela Faculdade de Ciências da Universidade de Paris, em 1976. Foi bolseiro do Instituto de Alta Cultura, no Laboratório de Física Nuclear e de Altas Tecnologias da École Polytechnique (entre 1971 a 1976) e da Organização Europeia de Pesquisa Nuclear, de 1976 a 1978. Agregado em Física, desde 1979, no Instituto Superior Técnico, foi presidente da Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (entre 1986 e 1989). Foi ainda fundador e presidente do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas, em Lisboa, e professor catedrático do Instituto Superior Técnico. E estas são apenas algumas linhas acerca do seu percurso profissional.

Politicamente falando foi ministro da Ciência e da Tecnologia nos governos de António Guterres (Partido Socialista – PS), entre 1995 e 2002. Em 2005, foi nomeado Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior no governo de José Sócrates (PS), tendo sido renomeado para o cargo no governo seguinte, também de Sócrates, até 2011. Foi, assim, o político português que mais tempo desempenhou as funções de ministro, (um total de 12 anos) e é considerado por muitos o melhor ministro da Ciência que Portugal já teve.

Mariano Gago

Voltando à passada sexta-feira: quando a meio da manhã o meu despertador tocou estava longe de imaginar o choque que teria minutos depois. Ainda com os olhos meio fechados liguei o tablet em busca de colocar em dia as notificações, mensagens e emails recebidos durante a noite (e início da manhã). E qual não foi o meu espanto quando me deparo com a notícia da morte de Mariano Gago. Primeiro pensei que fosse uma brincadeira de mau gosto ou uma notícia falsa (hoje em dia é difícil acreditarmos numa notícia deste género), mas infelizmente confirmei logo de seguida ser, efectivamente, verdadeira.

Confesso que não sabia muito sobre a sua vida, o seu percurso profissional, ou sequer que sofria de cancro. Mas era alguém que respeitava e que, fez um excelente trabalho em todos os locais por onde passou. E após o seu desaparecimento conseguiu reacções igualmente emocionadas de figuras ligadas a todos os partidos do espectro político nacional. E quando assim é, sabemos que estamos perante alguém de respeito e excelência.

Outro grande português que nos deixou recentemente foi o cineasta Manoel de Oliveira. Todos pensávamos que ele seria o primeiro ser humano imortal, mas acabou por falecer de velhice. Sim, leu bem: a causa da morte foi velhice. Qual foi a última vez que alguém tinha morrido de velhice?

Vamos agora ao seu percurso. Manoel Cândido Pinto de Oliveira nasceu no dia 11 de Dezembro de 1908, no seio de uma família da burguesia industrial do Porto, 13 anos após o nascimento do cinema (sim, “apenas” treze anos após a criação do cinema!). O seu primeiro contacto com a sétima arte foi como actor, quando aos 19 anos fez figuração no filme “Fátima Milagrosa”, de Rino Lupo.

A paixão pelo cinema estava taco a taco com o gosto pelo atletismo (onde foi campeão de salto à vara, sim, leu bem “campeão”) e pelo automobilismo, modalidade em que conquistou alguns prémios (quando se é bom brilha-se em qualquer lado não é?). “Douro, Faina Fluvial”, uma curta-metragem documental sobre a vida nas margens do rio Douro, foi o primeiro filme de Manoel de Oliveira, então com 23 anos, com uma câmara oferecida pelo pai.

Hoje, a película é largamente elogiada, quase unanimemente considerada uma obra-prima, mas na altura foi mal recebida pelo público, tal como “Aniki-Bobó”, o seu primeiro filme de ficção, estreado em 1942. A falta de apoios financeiros levou-o a deixar o cinema até 1956, quando estreou a curta-metragem “O Pintor e a Cidade”, o seu primeiro filme a cores.

Nos anos 1970 a sua carreira começou a acelerar em termos de produtividade e a ascender a nível internacional: é a época da sua incontornável “tetralogia dos amores frustrados”, com “O Passado e o Presente” (1971), “Benilde ou a Virgem Mãe” (1975), “Amor de Perdição” (1978) e “Francisca” (1981).

Em 1985, com 77 anos, recebeu o “Leão de Ouro” do Festival de Veneza, em Itália, e em 1989 foi condecorado pelo então Presidente da República, Mário Soares, com a Comenda da Ordem do Infante D. Henrique.

Manoel de Oliveira

Como a sua carreira é longa e repleta de conquistas e vitórias temos de dar um salto temporal até 2008, ano em que, rodeado de familiares e amigos, festejou os seus 100 anos de vida. Ao mesmo tempo filmava em Lisboa «Singularidades de uma Rapariga Loura», filme que lhe valeu a “Palma de Ouro de Carreira” em Cannes, um prémio que juntou ao “Leão de Ouro de Carreira” que Veneza lhe entregara em 2004.

«O Gebo e a Sombra», a partir de uma obra de Raul Brandão foi (em 2012) a sua última longa-metragem. E o seu último trabalho foi a curta-metragem «O Velho do Restelo», a partir de textos de Luís de Camões, Teixeira de Pascoaes e Miguel de Cervantes.

Mas mais espantoso que o seu talento, as ideias constantes e a energia e jovialidade com que sempre se apresentava perante as câmaras era o facto de ter a sorte de ainda ter ao seu lado a mulher da sua vida. Maria Isabel Brandão Carvalhais nasceu a 1 de Setembro de 1918 (tem, portanto, 96 anos de idade) e casou com Manoel de Oliveira no distante ano de 1940 tendo o casal tido em conjunto quatro filhos.

Por último, mas não menos importante, o terceiro mestre referido nesta crónica: Herberto Hélder. De seu nome completo Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira nasceu a 23 de Novembro de 1930 (tinha, portanto, 84 anos de idade) tinha ascendência judaica, não gostava de conceder entrevistas, recusava-se a ser fotografado e não atribuía especial significado aos galardões (tendo mesmo, como se sabe, chegado a rejeitar diversos prémios).

Em 1958, publica o seu primeiro livro, O Amor em Visita. Durante os anos que se seguiram vive em França, Holanda e Bélgica, países nos quais exerce profissões pobres e marginais.

Repatriado em 1960, torna-se encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, percorrendo as vilas e aldeias do Baixo Alentejo, Beira Alta e Ribatejo. Nos dois anos seguintes publica os livros A Colher na BocaPoemacto e Lugar. Em 1963 começa a trabalhar para a Emissora Nacional com redactor de noticiário internacional, período durante o qual vive em Lisboa.

herberto helder

Em 1970 viaja por Espanha, França, Bélgica, Holanda e Dinamarca, publicando nesse ano a terceira edição de Os Passos em Volta e escreve ainda Os Brancos Arquipélagos. Em 1971 desloca-se para Angola onde trabalha como redactor numa revista. Regressa a Lisboa e parte de novo, desta vez para os Estados Unidos da América (EUA), em 1973, ano durante o qual publica Poesia Toda, obra que contém toda a sua produção poética.

A partir daqui torna-se difícil relatar o seu percurso (algo que está directamente relacionado com o facto de dar muito poucas entrevistas). Ao todo foram trinta e sete as obras que publicou e vários os prémios que recusou receber ao longo dos anos. Quis o destino que o ano de 2015 marcasse a despedida do mundo dos vivos de um dos mais geniais poetas portugueses de todo o sempre.

É impossível terminar o “Desnecessariamente Complicado” desta semana sem fazer uma referência ao 25 de Abril. Como é possível que o dia mais importante de toda a história deste país se tenha tornado apenas mais um feriado? Como é possível que as gerações mais novas não saibam o aconteceu neste dia e o que mudou graças aqueles corajosos militares? Como é possível que se dê tão pouco valor à liberdade de que todos podemos hoje usufruir? Como é possível a democracia ser diariamente maltratada por tanta gente e ninguém fazer nada? Como é possível?

Não sei como é que chegámos até aqui, e como descemos tanto em tão pouco tempo. Sei, isso sim, é que mais do que nunca precisamos de nos unir. Apenas unidos podemos lutar por um país melhor, mais próspero e mais justo. E quando digo unidos não me refiro apenas a um partido político, mas sim a valores e a talento. Portugal precisa de todos quanto tiverem dispostos a dedicar o seu trabalho, o seu talento e os seus valores em nome do bem-maior que é o futuro de todos nós. E, infelizmente para nós, quis o destino que perdêssemos três elementos fundamentais nesta luta: Mariano Gago, Manoel de Oliveira e Herberto Hélder. Serão para sempre recordados pelos seus valores, pelo seu talento e pelo magnífico trabalho que nos deixaram nas respectivas áreas.

Que Abril nunca seja esquecido. Que a união deste povo que é o nosso nunca se perca. Porque se isso acontecer será o fim deste país que teimosamente continua a existir na extremidade da Europa e que dá pelo nome de Portugal.

Boa semana.
Boas leituras.