As palavras são pedras

“Estamos condenados a pensar com palavras, a sentir em palavras. Mas as palavras são pedras. (…) O que nelas vive é o espírito que por elas passa.”

Vergílio Ferreira, “Aparição”

Não vivo de palavras nem de histórias. Não vivo delas porque não alimentam coisa alguma senão o ser, em devaneios que vão e vêm com uma rapidez arrasadora. Vivo com a alma bêbeda de sonhos impossíveis, de mil e um futuros que nunca baterão à minha porta. E vivo assim porque ainda tenho asas, por muito que não tire os pés do chão.
Não conheço metade do que sou nem anseio por isso. A ignorância faz-nos felizes, torna-nos imunes ao sofrimento. Se não soubermos, não sentimos. Usamos os olhos para tudo e esquecemo-nos de ver com os outros sentidos. Vemos apenas o que se estende à nossa frente, o caminho mais fácil, sem desvios ou grandes complicações. Somos dados ao facilitismo, evitamos as lutas e viramos a cara aos problemas. Poucas são as pessoas que os resolvem realmente; é mais fácil fingir que nada aconteceu.
Não tenho dom nenhum. Não compreendo as pessoas, não entendo o mundo e mudo de opinião todos os dias. Mas dou valor às palavras e tenho com elas um companheirismo imenso, como se nos conhecêssemos desde o dia em que nasci. Aprecio-as sobremaneira porque não se deixam usar, porque batem o pé àqueles que querem fazer delas um veículo para um determinado fim. Depois esquecem-nas, como se esquece o Inverno quando vemos florir nas árvores a Primavera. Eu mantenho-as comigo todos os dias, como fiéis companheiras e amigas.
Não é fácil lidar com as palavras, sobretudo quando se tem por elas o amor que lhes dou. Algumas magoam, como se fossem facas a forçarem a pele a rasgar-se. Mas há palavras que nos elevam, que nos relembram as asas que temos e que nos esquecemos de usar. São ambas necessárias; caso não existissem palavras más, não daríamos valor àquelas que nos aquecem o ser. E utilizo ambas porque sou humana e nem sempre está tudo bem, nem tudo corre pelo melhor. Porém, substituo os murros no ar por palavras afiadas das quais muitas vezes me arrependo.
Não sei o que me reserva o futuro e talvez um dia esqueça o meu amor às palavras. Talvez um dia viva de gestos e olhares, com os lábios colados e os pensamentos mudos. Por enquanto aproveito o sabor de cada sílaba, o paladar extravagante da mais simples palavra. O mundo faz-se ouvir com a voz e a voz com as palavras.

BárbaraBorralhoLogoCrónica de Bárbara Borralho
Riso sem siso