Parte 3 – Modelos pedagógicos: “Reggio Emilia” – Um modelo de eleição

Hoje trago-vos nesta “Parte 3” do trabalho de crónicas sobre modelos pedagógicos, um modelo pouco conhecido em Portugal, mas considerado no entanto um dos melhores do mundo.Por isso mesmo escrevo hoje sobre este modelo.

Trata-se do modelo de Reggio Emilia, que faz parte dos modelos inseridos na chamada “Escola Democrática”, e enquanto método, e como experiência educadora, foi mesmo tido como o melhor do mundo em 1991, continuando a ser por muitos considerado e reconhecido como o melhor modelo pedagógico.

Este modelo pedagógico, tal como sucede com todos os modelos, insere-se num contexto e numa forma de “ver a vida”, antes de mais, transportada depois para a educação.
A sua origem data do “pós 2ª Guerra Mundial”, 1945, numa Itália “desfeita”, e nasce a norte, em Villa Cella.

Neste lugar, com cerca de 170 mil habitantes, uniu-se um grupo de mulheres em torno da vontade de dar resposta à necessidade de criação de uma escola para crianças, desde o nascimento até aos 6 anos de idade, resposta inexistente na altura na rede pública, e a elas se juntou uma grupo de pessoas: nasce a escola e o modelo.

O objetivo fundamental que lhe deu origem foi o de permitir que existisse igualdade de oportunidades e promover o sucesso escolar, colmatando a lacuna de não existir um espaço criado na Rede escolar para as crianças do Jardim de Infância/pré-escolar e da Creche, e tendo em conta o facto de que a maiorias dos pais e mães não conseguirem cuidar da educação das suas filhas e dos seus filhos nestas idades precoces, a tempo inteiro, e de forma positiva e integrada.

Perante uma situação local de pais, e mães, famílias, que não conseguiam tomar a seu cargo em casa, uma educação positiva e facilitadora das aprendizagens das crianças em idades precoces, em primeiro lugar pela própria cultura, ou falta dela, da maioria da população e pelos níveis de alfabetização baixos próprios da época, e por outro lado por muitos pais e algumas mães estarem largas horas a trabalhar, ao que acresce ainda as condições de vida numa Itália em ruínas onde não poderia jamais assegurar-se que todas as crianças teriam os mesmos cuidados, atenção e condições por parte das famílias, nem se podia assegurar a todas as famílias as mesmas oportunidades e qualidade de vida.

Assim, se a uns poderiam talvez ser garantidas as boas oportunidades para as aprendizagens e desenvolvimento, mesmo fora de um sistema educativo, para outros tal não sucedia, e ficavam à partida numa situação desfavorecida.

Neste quadro um grupo de mulheres empenhadas, com a colaboração de outras cidadãs e cidadãos dedicados, une-se por forma a garantir que todas as crianças daquele lugar, em idades precoces, acedam a um espaço educativo onde seja garantida a igualdade de oportunidades a todos os meninos e a todas as meninas; um espaço que surge assente no pressuposto de que todas as particularidades de cada família e das crianças sejam tidas em consideração, onde se reforça o valor de cada pessoa, adulto e criança, onde todas e todos colaboram na educação: crianças, professores/educadores e familiares.
Um educador muito ligado a este modelo e que participou, aliás como outras pessoas de Villa Cella à época, na criação efetiva da primeira escola com este modelo pedagógico, Loris Malaguzzi, defendia e reconhecia as habilidades das crianças como um reconhecimento indispensável para o progresso de cada uma delas, nas aprendizagens como noutros aspetos, sempre com um profundo respeito pela sua individualidade.

Este é aliás o pressuposto em que assenta o modelo pedagógico de Reggio Emilia: A criança e as suas “cem linguagens” – aquelas com que nasce… Partindo daqui. desta convicção, os adultos têm como prioridade educativa a escuta ativa da criança e o reconhecimento das suas capacidades e potencialidades. sempre com o cuidado de a observar e considerar a sua individualidade.

Na prática isto traduz-se num modelo onde se destaca o “Atelier”, como ponte de ligação entre as matérias e os professores/educadores e as crianças, sendo o atelierista a pessoa responsável por desenvolver dinâmicas que façam a ponte entre os saberes e o “fazer”, recorrendo preferencialmente a diversas expressões pela Arte, por exemplo.

Nas escolas onde se segue este modelo pedagógico, (e note-se que começou por ser criado em Villa Cella para crianças até aos 6 anos de idades, mas atualmente pode ser aplicado nos diversos ciclos do ensino básico, e é-o com bastante eficiência na verdade), a tónica assenta na criação de “Laboratórios do fazer”, onde se combinam as componentes tradicionais ou convencionais das matérias curriculares com as várias formas de expressão e linguagem, passando pelo movimento, expressão corporal, o pensamento, as discussões éticas, as ferramentas multimedia, as artes, etc.

Parte-se do pressuposto que as crianças aprendem “com” o “todo que são”, aprendem percepcionando através de todo o corpo, aprendem com o corpo todo, e não apenas com uma das suas partes… Recorre-se por isso mesmo às várias formas de expressão e linguagem, e caminha-se sempre pela via da arte na educação, este aspeto é bastante importante no modelo, mas não só.

Uma das partes mais interessantes do modelo, e também em Portugal por exemplo, uma das menos (re)conhecidas, é que este modelo recorre à educação e ensino democrático.
Por cá associa-se muito a escola democrática ao MEM (Movimento da Escola Moderna), ainda que também este seja uma forma alternativa de ensino. É no entanto algo conhecido das pessoas mais atentas a estas coisas, tendo sido muito adotado por algumas professoras e professores no “pós-25 de Abril” em algumas escolas públicas e também em várias Instituições e Associações, ou mesmo Colégios privados.

A Voz do operário é por exemplo uma das Associações mais conhecidas que funciona recorrendo ao Movimento Escola Moderna na educação e ensino, muito próximo daquilo que esse modelo é de facto na sua essência.

Apesar de ser o MEM que protagonizou o modelo pedagógico mais conhecido pelo seu cariz comunitário e democrático, na verdade esse não é o único modelo de base democrática que existe por terras lusas…Este modelo que aqui descrevo hoje, pouco conhecido e até pouco compreendido no país, funciona assente no pressuposto democrático da educação.

Assim, todo o trabalho na escola é levado a cabo por uma equipa pedagógica alargada, onde todos são agentes de educação – alunos e alunas, docentes (professores e educadores, familiares e atelieristas – estes últimos que funcionam, como se referiu anteriormente, como parceiros de professores e educadores, que criam as pontes necessárias à consolidação dos conhecimentos que as crianças vão ganhando e experienciando através das várias linguagens e expressões que lhes são proporcionadas.
Todo o grupo ou equipa pedagógica age num sentido comum – a expansão do método de conhecimento próprio da criança. Para isto a criança tem à sua disposição as artes e outras formas de expressão na prática diária.

Um aspeto muito importante é percebermos que de acordo com este modelo, e bem quanto a mim, o ser humano tem uma mente multidisciplinar, e isso nasce com ele. Por isso mesmo a forma de aprendizagem de cada criança pode recorrer a uma panóplia de linguagens (as referidas “cem linguagens”) e a criança deve ser observada na sua forma própria de aprender, por forma a sentir o incentivo à aquisição desse conhecimento; de certa forma ela apropria-se do conhecimento e é incentivada pelos adultos da equipa a essa aprendizagem.

No modelo pedagógico, e de educação, Reggio Emili, todas as decisões passam por todos os que estão envolvidos na escola. As famílias participam ativamente nas decisões e na partilha de informações e troca de ideias, tal como os alunos, os docentes, os atelieristas, e todos os outros profissionais na comunidade educativa.

Assente num plano de igualdade, não existem hierarquias, e as decisões são realmente participadas por todos os membros da comunidade “escola”.

Cria-se um companheirismo favorável ao saudável desenvolvimento dos alunos, às aprendizagens e às vivências

Há uma verdadeira relação de proximidade, onde ninguém precisa de defesas de tipo autoritário, nem ninguém “pode” mais do que o outro – Não se trata jamais de uma questão de poder.
Quer ao nível educativo propriamente dito, como ao nível de outras ações, iniciativas e políticas escolares e da comunidade educativa, todos podem e são chamados a participar ativamente. Todos têm um papel que assumem, sem sobreposição, sem competição, mas com um total respeito pelas responsabilidades de cada um, e tornando todos agentes de educação, em estreita cooperação e proximidade: a criança ou jovem, os pais e as mães, professores e pedagogos, funcionários em geral.
Os coordenadores têm importância, como os cozinheiros podem ter a mesma importância numa visita das crianças à cozinha para experienciar mais uma aprendizagem, por exemplo.

Cada um tem o seu papel, mas todos são protagonistas do modelo educativo em questão.
Claro que há a seleção e recrutamento das pessoas, a formação contínua, de todos os profissionais envolvidos. Da mesma forma que se incentiva o desenvolvimento das potencialidades das crianças, também os professores e educadores são formados com vista a serem incentivados “ao que de melhor têm para oferecer”, “as suas maiores potencialidades”.

O trabalho é gerido por coordenadores, em cada unidade de ensino, de acordo com a aplicação do modelo pedagógico em todo o mundo.

De salientar neste modelo o aspeto de elevado mérito no que se refere à inclusão na educação e na comunidade educativa: diferentes capacidades, diferentes culturas, diferentes num qualquer aspeto, são igualmente aceites, sem restrições.

Curioso é notar que dentre os vários autores que influenciaram o modelo, um dos que mais o influenciou de certa forma foi Piaget…mas é precisamente um dos mais criticados por quem defende o modelo, sobretudo pela tónica que este autor coloca nos “estádios” estruturalmente “estanques”, ao nível do desenvolvimento da criança, e também pelo excesso de empenho do autor em enfatizar o pensamento lógico-matemático, e as ciências, em detrimento da relação entre pensamentos e linguagens, das relações sociais, do papel dos adultos, dentre muitos outros fatores relevantes, e fundamentais, no desenvolvimento da criança e na aprendizagem.

O modelo vai no entanto “buscar” a Piaget o “imenso contributo” da criança no seu próprio desenvolvimento, ou seja o papel ativo da mesma na construção do seu conhecimento do mundo, da capacidade que ela tem em construir sozinha significados através do que experiencia no dia a dia.
O modelo vai ainda inspirar-se em Vygotsky, naquilo que este psicólogo defendia ser de vital importância, e que Piaget de certa forma despreza, o papel ativo do adulto no desenvolvimento da criança.

Este autor dá ao adulto um papel em que ele serve de suporte e de apoio às crianças, por forma a que estas possam atingir um determinado nível ou grau de desenvolvimento, que é superior ao que conseguiria sozinha.

Partindo do pressuposto que o pensamento e a linguagem se encontram em estreita relação, defende Vygotsky que, nas crianças, pensamento e linguagem entram em cooperação, coordenam-se, para formar ideias e planos de ação, que a fazem ser capaz de controlar, descrever, executar e discutir. O adulto participa aumentando o nível de desenvolvimento que a criança iria atingir sozinha.
Sem me deter mais nesta matéria, que é um pouco densa para quem não é da área, não quis deixar de referir os dois autores que de facto parecem ser fundamentais neste modelo pedagógico, até pela crítica e correção feita no caso das teorias piagetianas, e aplicada ao modelo levado à prática.
Logicamente que se percebe que o modelo vai “beber” a Vygotsky tudo o que necessita para imprimir na sua ação toda a lógica de comunidade educativa.

A participação dos adultos é fundamental no incentivo ao desenvolvimento das aprendizagens na criança, e todos participam.

Por outro lado, apesar do modelo ser à partida um modelo curricular, que obedece a um planeamento das atividades, ele é no entanto um modelo que recorre à formulação de hipóteses acerca do decurso dessas atividades, e , mais importante ainda, ele emerge das crianças, ou seja o ponto de partida é a criança e não a “agenda” do professor…

Existem claro está, os objetivos em traços gerais, que são o referencial para cada atividade e tarefa proposta. mas depois formulam-se hipóteses do que pode vir ou não a suceder ao longo das atividades.
Este planeamento de atividades já pressupõe o levantamento e formulação de hipóteses, sempre tendo como ponto de referência especial e central o que se conhece ou o que se vai conhecendo acerca de cada criança e. claro está, a experiência de trabalho do próprio profissional.

Todos os adultos envolvidos no processo têm um papel fundamental, na escola e no percurso das crianças, que é definido de acordo com o que é tido em consideração pelo próprio modelo pedagógico.

É um modelo pedagógico alternativo aos modelos mais tradicionais, que traz consigo aquilo que para mim representa o que de melhor em educação se pode e deve oferecer: algo que congrega a democratização da escola, a participação ativa dos familiares e das próprias crianças, e ao mesmo tempo o respeito pela individualidade de cada criança, de cada professor, de cada família, incentivando cada um ao seu papel, e potenciando o que têm de melhor.

É inclusivo verdadeiramente, acolhe as diferenças, acolhe também as diferentes culturas, respeitando cada pessoa verdadeiramente e sem ter hierarquias.Recorre à expressão e à educação através das artes, e inspira-se naquilo que para mim tem de melhor e mais pertinente Vygotsky, como Piaget, tecendo as críticas que considero justas e realistas a este último.
É reconhecido como um dos melhores do mundo, tendo sido já referido o melhor do mundo em termos de qualidade de ensino.

O que por vezes sucede neste modelo pedagógico é que nem sempre ele é bem aceite por todas as
culturas e famílias, e tende a ser desconhecido e muito mal compreendido por alguns.

As pessoas, professores e famílias, e mesmo outros funcionários, demasiado adaptados à “formatação” e ao “espírito grupo” de comando do grupo de pares mediante a autoridade da pessoa hierarquicamente “acima”, desconfiam com frequência deste modelo, sobretudo se não lhes é correctamente explanado, ou se por eles não é bem entendido. Por vezes não concordam com ele por questões tão simples como a de “ausência de formatação” a que estão mais “habituados”…e, claro, a horizontalidade do modelo na prática.

O respeito pela individualidade e a honestidade com que se colocam as questões educativas e relativas à escola, neste modelo, e porque precisamente todos têm um papel, e as coisas são debatidas entre todos, não é bem recebida por algumas famílias, nem por alguns professores ou educadores, sobretudo quando não estão tão preparados para aceitar o envolvimento de vários protagonistas na educação das crianças e na escola…

O modelo, na minha opinião, não é fácil de aplicar, mas bem aplicado é brilhante. Só lamento que não existam mais escolas em Portugal que o sigam e respeitem, aplicando-o à prática com rigor e dedicação. Seria excelente que o modelo fosse aplicado em mais locais…É de facto um modelo que respeita e congrega pontos muito positivos daquilo que considero essencial estar presente na comunidade e na vida educativa das nossas crianças, e também nos nossos professores…

Mas cada modelo tem sempre “prós e contras”, depende de cada reflexão, de cada pessoa…Este, para mim, é um dos modelos que considero “de eleição”. Outros haverá certamente que discordarão.

Grata pela vossa leitura, por hoje fica esta reflexão e informação acerca de mais um modelo pedagógico alternativo. Desejo-vos uma excelente semana!