Pégaso, o cavalo símbolo da perfeição

Chamei-lhe meu!, antes de passar a fazê-lo pelo pomposo nome que nessa mesma tarde lhe pus quando o vi pela primeira vez: Pégaso, o nome do cavalo alado que na Grécia antiga simbolizava a imortalidade e que na minha memória permanecerá vivo enquanto for de um cavalo com asas que desafiava os limites da imaginação, que eu continue a lembrar-me sempre que lhe dedicar algum tempo a pensar na amizade que nutríamos um pelo outro.

Deu-mo o meu pai como prenda de aniversário quando completei os dezasseis anos, mesmo antes de ir o 11º ano … bem, para dizer com exatidão, ele deu-me foi a oportunidade de aprender, desembolsando o que pagava para eu frequentar aulas num picadeiro perto de Coruche, que equitação é não só a arte de executar saltos para transpor obstáculos que fazem com que levemos uma taça para casa, mas também os laços de amizade que aprendemos a estabelecer com os animais e os cavalos em particular, baseada no respeito e num sentimento, que não é de posse, por um animal que é muitas vezes mais nobre do que o próprio dono.

Para quem não sabe, um picadeiro é um lugar onde se ensinam ou amestram os cavalos e foi a um desses sítios que passei a ir quase dia-sim dia-não, metade das horas a que assistia por semana às aulas de Português da professora Carla Pereira, mas onde estava com o dobro do prazer.

Estabeleci logo uma relação de amor à primeira vista com Pégaso, um belíssimo exemplar de um cruzamento de raças nacionais que podia ser tomado como um exemplo a seguir.

Era tão bonito e aparentava ser tão manso que não resisti a aproximar-me dele e a afagar-lhe, com a palma da mão aberta para ver que não continha nada que o pudesse magoar, o pelo macio e sedoso que era aqui e acolá pontuado de manchinhas brancas que sobressaíam no tom claro de castanho que era a cor predominante. Tinha uma pequena no chanfro, que é próxima do olho e outra mais abaixo na bolsa da bochecha, dando-lhe um ar engraçado semelhante a uma barba e que parecia muito maior do que na realidade era, porque tinha a boca cheia de estar a mastigar um pedaço de feno. Fez-me recordar a estátua de bronze de um lendário guerreiro que foi discípulo de Aristóteles e conquistou o mundo à sua passagem, por causa do porte majestoso que era igual ao de Bucéfalo, o famoso garanhão nascido na região da Tessália que deu a vida por Alexandre Magno num campo de batalha.

Fiz menção de me aproximar dele, assentando-lhe a mão na garupa, porém, mostrou-se precavido e sacudiu as orelhas, endireitando o pescoço, como se estivesse a corrigir uma postura que não era a mais correta, só para me agradar e foi só quando intuiu que eu pretendia fazer-lhe uma festa que baixou a cabeça em sinal de consentimento. Lentamente, subi com a mão à face anterior da cabeça e percorri-lhe a fronte e o topete, passando à nuca e descendo à crina, massajando as faces laterais do pescoço. Quando passei à zona da cernelha e do lombo, devo ter-lhe despertado o desejo de sair dali a galope, porque sem aviso prévio encostou-me a cintura ao flanco dele e abanou-me como se quisesse ver-me montá-lo, pouco se importando de não ter sela, nem de que eu, em vez de um elegante fato de amazona, simplesmente trajasse um casaco de lã a três-quartos sobre uma blusa de algodão com calças de ganga que tardavam em romper-se no joelho para ficarem iguaizinhas a umas que vira na montra da Zara, com que me achava o máximo mesmo que me sentisse um pouco desacompanhada nestas questões da moda pelo meu pai que vestia invariavelmente o mesmo fato e nem para ir comigo conhecer o instrutor, à responsabilidade de quem o Pégaso já estava e eu passaria a estar quando como instruenda as aulas começassem, achou que valia a pena mudar de indumentária.

Era um homem sisudo dos seus cinquenta e tal anos, que mal falou com ele e quando o fez foi de um modo abrupto, expelindo as palavras como quem as arremessa aos ouvidos sensíveis das outras pessoas, rude como eu achava que só se podia ser uma vez, porque à segunda tentativa alguém vinha por detrás de nós e dava-nos logo um estalo fazendo-nos mudar de comportamento. Apresentava-se com um aspeto repugnante. As sobrancelhas eram grossíssimas mas deviam parecer-lhe finas quando se via ao espelho e tinha uma barba de três dias que servia provavelmente para esconder alguma cicatriz que tivesse, assim como todas as imperfeições da pele. O nariz era pontiagudo e dava nas vistas como um carro avariado no meio do trânsito e à sombra dumas pestanas desalinhadas, por detrás daqueles olhos baços devia esconder-se um espesso manto de nevoeiro.

Marcou o início das aulas para o dia seguinte e despediu-se do meu pai sem um aperto de mão, nem um sorriso que correspondesse ao do meu, satisfeito por enfim ir vê-lo pelas costas. Dispensou-nos com um aceno e no dia seguinte, à hora marcada, lá estava eu onde estivéramos nesse dia a conversar e onde supostamente deveria começar a ensinar-me a arte de cavalgar a toda a sela. O recinto era uma espécie de arena com o chão coberto de uma areia mais grossa do que a da praia mas com menos seixos e conchinhas do mar onde eu pudesse arranhar o corpo se caísse, pouco maior do que a grande área de um campo de futebol mas onde um jogador, por causa do piso, sentiria dificuldades em correr, nem que tivesse calçadas umas botas com pitons especiais de corrida. Por cima, em toda a extensão, havia um telheiro que servia de cobertura nos dias em que chovesse, parecido com os de entrançado de folha de palmeira que havia em África, com a vantagem, em relação aos se zinco, de absorver menos calor nos dias em que treinássemos no Verão às horas mais quentes. De lado ele era aberto, sem tapumes nem quaisquer paredes a unir os barrotes no qual ele, feito à medida, assentava que nem uma luva de pelica. Era uma construção rudimentar mas que servia perfeitamente o propósito a que estava destinada.

Onde era suposto começar a treinar, porque ao meu pai, convindo que eu aprendesse rapidamente, ouvira eu dizer que quanto mais depressa ganhasse equilíbrio, mais rapidamente dispensaria o treino acompanhado, que é como quem diz, a presença do instrutor que, em sua opinião, arrecadava a parte de leão do que pagava. Talvez receasse que, se o dinheiro faltasse, eu não pudesse permanecer na escola tanto tempo como gostaria. Ele tinha investido tanto já que, a certa altura, achei que fosse arrepender-se de me ter inscrito numa escola de elite e, em vez de numa fatiota catita de amazona, preferisse ver-me de chuteiras nos pés e caneleiras a jogar à bola com os meninos na rua, com uma camisola vulgar que não podia ser, por causa do preço se fosse comprada numa loja oficial, a do clube do seu coração, muito menos uma que viesse autografada nas costas pelo craque que na jornada do fim-de-semana costuma brindar com mais golos as equipas adversárias.

A equitação é uma modalidade desportiva em que, além do valor das mensalidades, há que investir dinheiro na aquisição de equipamento e a julgar pelo preço deste elas deviam ser caras. Uns dias antes, fôramos comprá-lo à sucursal, perto de minha casa, de uma loja de material desportivo que anunciava ter tudo para o desporto, à exceção de alternativa no preço ao seguinte equipamento que comprámos: um toque de equitação safety em promoção por 29,95 euros; um indispensável colete de segurança com proteção dorsal flexível por 49,95 euros; um par de botas com forro que era fundamental serem confortáveis por 129,95 euros; o par de botins de atacador por 39,95 euros; um indispensável stick de gel por 12,95 euros; o par de esporas de pontas quadradas por 6,95 euros, com as respetivas correias de esporas entrançadas por 1,99 euros e finalmente um saco imenso onde coubesse tudo isto e muito mais se fosse preciso, para transportar comodamente todo o equipamento por 29,95 euros.

Confesso que fiquei surpreendida, quando o instrutor me levou dali e apontou no edifício ao lado, uma porta por onde entrámos numa pequena sala que tinha afixado um aviso a dizer que era de Formação. Ao centro, em cima de uma mesa de apoio havia um projetor e na parede ao fundo, pendurada uma tela branca para onde ele estava virado como um canhão. Quatro filas de três cadeiras enchiam a sala e nas restantes paredes, onde sobrasse espaço por entre os armários, estavam emolduradas, como diplomas de mérito, fotografias de cavalos de diferentes raças. Numa estante, havia várias taças em exposição e, pela única janela só não entrava mais luz porque estava tapada por uns cortinados de folharecos às cores, conferindo àquela divisão um ar tão acolhedor como o da sala de cinema de lá de casa, mas sem o sofá para a minha mãe estender as pernas ao colo do meu pai que pacientemente lhe massajava os pés com creme indicado para as mãos.

Revelando pouca habilidade para manusear aparelhos elétricos, o meu instrutor quase provocou um curto-circuito no projetor que me faria sair dali a correr e depois retirou de um dos armários um filme para vermos em conjunto. Reduziu as luzes ao nível de presença e recostada na cadeira pensei que só faltava trazerem o balde das pipocas para me sentir mais relaxada. Não me atrevi a pedir-lho, não fosse, por ele ser uma pessoa azeda, virem das que eu menos gostava e que eram as temperadas com sal ou gotinhas de sumo de limão, em vez das que traziam carradas de açúcar ou mel, que dessem para enfiar à vontade a mão no balde e no fim lamber os dedos lambuzados de doce.

Durante aproximadamente cinquenta minutos, vimos um vídeo mostrando as habilidades que todos os cavalos estão aptos de realizar se forem, segundo o comentário que ouvíamos no som de fundo, submetidos a um intenso treino de aprendizagem. Comecei por observá-los à nascença, esforçando-se por se equilibrarem sobre as patitas que mal sustinham o seu peso e já queriam aventurar-se a dar os primeiros passos no mundo.

Numa fase posterior, alguns, ainda jovens, caminhavam entre a manada enquanto outros se viam deitados a mamar à beira das mães, que só se afastavam momentaneamente para eles terem a certeza, ao verem-na regressar à pressa, que ser-lhes-ia impossível viver sem ser ao seu lado. Mais uns instantes e no meio de outros tantos exemplares, que eram mais ou menos velozes, vi cavalos mais ágeis do que felinos, acostumados às alturas, a darem saltos acrobáticos e apaixonei-me pelos póneis.

Contudo, ainda o episódio não terminara e já o meu instrutor, sem me dirigir a palavra, se levantava e desligava o aparelho que zumbia mais alto do que um moscardo igual aos que nas imagens alguns dos cavalos se esforçavam por sacudir de cima de si com o auxílio da cauda. Nessa altura, recomendou-me que em casa visse documentários sobre animais e despediu-se de mim até dali a dois dias.

Para primeiro dia fora uma desilusão! Mal podia conter a minha raiva. Estava irritada por ter perdido tanto tempo e, do Pégaso, só ter sentido o cheiro que vinha do lado contrário ao da sala de multimédia para onde fôramos. Jurei que da próxima vez em qua ali fosse, nada nem ninguém nos separaria e que, a tamanha proximidade, jamais voltaríamos a passar tanto tempo afastados.

Esgueirei-me facilmente à saída, passando por um grupo de raparigas que só do que sabiam falar em voz alta era da roupa que vestia a Beyoncé num espetáculo, como se de alguma maneira a conhecessem sem ser da televisão como eu aos cavalos que acabara de ver e, em vez de me encaminhar para o portão onde o meu pai devia estar estacionado à minha espera de carro, corri na direção dos estábulos onde encontrei um rapaz com ar de quem sabia o que estava ali a fazer. Ao princípio assustei-me. Era um desses moços de estrabaria com uma bata vestida como se fosse um ferrador e que, para aligeirar o cansaço ou ver se passava a vontade de trabalhar, se sentara com uma escova de cerdas de javali na mão e um produto de limpeza na outra, que devia servir para arear as peças metálicas de uma sela que estava ao lado ou uns arreios que pousara no colo.

Senti-me triste por ter vestido a minha farpela de amazona. A roupa dele podia não ser tão bonita como a minha mas era adequada às suas funções. Se estivesse tão impropriamente vestido como eu para as tarefas que executava no dia-a-dia, vê-lo-ia talvez de fato igual ao do meu pai, do qual só diferiria no tamanho porque era mais alto e mais magro, que só haveria de tirar à noite quando abandonasse o local para voltar a casa, onde talvez o esperasse uma namorada de braços abertos.

Surpreendido por me ver chegar, desviou a atenção do que estava a fazer e levantou a cabeça, como se fosse uma toupeira a desenterra-la de um buraco pouco profundo. Perscrutou-me com o olhar. Primeiro fixou-o nas minhas pernas a tremer e depois subiu em direção à boca que continuava aberta, ainda não refeita do espanto nem do susto que me causara o nosso encontro e antes que eu tivesse tempo de fechá-la e articular uma frase, perguntou-me quem eu era e o que estava a fazer numa área da escola de acesso restrito aos funcionários ou aos alunos.

Ante a minha atrapalhação, começou a sorrir. Soltou uma gargalhada e eu pensei que escarnecia de mim, no final de me ouvir contar do tempo que tinha desperdiçado, encurralada e trancada numa sala às escuras da qual saíra mais aborrecida do que se tivesse acabado de presenciar o mesmo filme pela décima quarta vez no espaço de uma semana.

Encarou-me com um ar insuspeito pois estava consciente de que, da minha parte, nada tinha a temer. Recearia mais a entrada do meu instrutor que ralharia consigo numa reação pouco simpática ao trabalho que ainda estava por fazer. É que, além das selas e dos arreios, tinha a indicação de que era preciso remendar as calças que estavam dentro de um saco, antes que aparecesse o dono. Aposto que detestava tê-lo à perna, mas não fazia nada para evitar vê-lo zangado. Se eu não me tivesse insurgido contra, acho que acenderia um cigarro que passeou entre os dedos até entalá-lo na orelha de encontro ao cabelo.

Percebi que era uma daquelas pessoas que gostam de trabalhar livres da pressão para chegarem ao final do dia com as tarefas todas cumpridas e também que, para agir com tamanha displicência, devia ser o filho do dono do picadeiro, com quem talvez só se parecesse no aspeto físico, já que no campo profissional, trabalhando tão devagar, não só teria extremas dificuldades em gerir bem o negócio, como estaria a dar um péssimo exemplo a todo os funcionários.

Decidi, pela ausência de traços no rosto que permitissem concluir que era mais velho, que não teria uma idade superior a dezoito anos, a meu ver, a idade-limite num rapaz para querer saber o que refere o Cartão de Cidadão dele a respeito do estado civil. Mas no caso daquele rapaz, não estava interessada em descobrir o que quer que fosse.

Sentia-me com energia suficiente para carregar sozinha o saco do equipamento, mas nem que ele num gesto solidário me tivesse oferecido ajuda, julgando que era pesado, eu aceitaria. Ver-me-ia obrigada a recusar, porque não tencionava ir-me embora tão cedo, muito menos ficar de conversa mole com ele, quando o que me importava verdadeiramente era saber do estado de Pégaso. Teria tido saudades minhas? Teria sentido a minha presença há pouco?

Entretanto, talvez adivinhando os meus pensamentos, o rapaz afastou-se e foi escovar um cavalo. Pegava tão desajeitadamente na escova de cerdas compridas que me deu pena. Agitava-a com destreza e vigorosamente, como se manejasse o cabo de uma esfregona, mas tinha a elegância de um chimpanzé numa pista de dança. Decidi ficar onde estava, sem me mexer. Não queria ser vista na companhia de um rapaz que fazia aquilo tão mal, não fosse alguém associar-me a ele e pensar que era assim que o fazia porque era eu que estava a ensiná-lo.

Virou-se para mim e perguntou-me o nome e a idade. Respondi que me chamava Andreia e antes de desvendar a idade, propus-lhe um enigma. Sempre queria ver se a tanta curiosidade correspondia igual dose de inteligência. Consistia em saber quantos sacos carregavam respetivamente um burro e um cavalo, que marchavam lado-a-lado, sabendo que o primeiro reclamou do peso que levava às costas e que o outro lhe respondeu não ver motivos para este se queixar, uma vez que se o parceiro lhe cedesse um saco passaria ele a carregar o dobro dos seus, ao passo que se sucedesse o contrário limitar-se-iam, cada um, a carregar uma carga igual. Para mim, fora imediatamente óbvio que o burro era mais preguiçoso. Carregava apenas cinco sacos, contra sete do cavalo que dera um sinal claro de superioridade ao dar uma resposta tão inteligente. Não só pelos motivos anteriores, não queria ser vista com um rapaz que era lerdo a trabalhar mas sobretudo a organizar as ideias.

Foi quando ouvi Pégaso a relinchar que desta feita fui eu a desviar a atenção do que ele me dizia. A partir daquele instante, deixou de me interessar tudo o que ele dissesse. Por mais que se esforçasse por me agradar, nunca da boca dele com palavras me transmitiria tanta alegria como aquele animal com um simples aceno de cabeça.

Dirigi-me à box do Pégaso e vi-o com o pescoço encavalitado na portinhola da entrada, como se quisesse saber se era de si que eu falava quando os meus olhos repentinamente brilharam por vê-lo à espreita, a contraluz do sol que inundava todo o recinto.

Desviou a cabeça e do foco de luz que vinha detrás na sua direção tive a sensação de que a paz estava iminente no mundo e vislumbrei a alvorada de um novo dia em que ele tornaria a ser livre e, se quisesse, podia sair dali comigo montada, para darmos um passeio sem hora de voltar.