Picadilly Circus, obrigado pelo nevoeiro! – João Nogueira

Continuo a preferir as cassetes e os discos! Prefiro puxar para a frente e para trás. Ouvir o barulho do rebobinador. Também prefiro o aspecto estético, confesso! Continuo a escolher ver os mesmos filmes que via contigo! Ainda ontem voei para o Quénia. Para a nossa África Minha. A Meryl Streep está sempre igual! Eu não deixo que ela envelheça. Dizem que já tem rugas a noroeste dos olhos bonitos! O tanas é que tem!

Amor, ainda ouço o Sinatra. Sempre o I’ve got you under my skin. E, pelo menos uma vez por dia, coloco a agulha no gira discos para ouvir a tua música. Às vezes arranha. Mas não faz mal.

When I need you 
I just close my eyes and Im with you,
And all that I so want to give you
Its only a heartbeat away

Desde que partiste que o Leo Sayer é quase a única pessoa que ouço! Mas sabes, às vezes, mesmo com os olhos fechados, não te vejo. Fecho-os com muita força. E nada! Tenho tanto medo de esquecer o teu rosto! Ontem sonhei contigo, mas tinhas outra cara! Hoje, vou-me recusar a adormecer. Não é que isso constitua qualquer desafio! Eu não durmo há dezassete anos! Dezassete!
Para ti foi mais fácil! Aliás, invejo-te a sorte! Deixámos ambos de viver. Mas eu morri mais do que tu.

Eu continuo aqui! Na mesma casa. Na mesma cama. Abraçado aos mesmos lençóis. O teu cheiro já não existe. Nem a tua almofada tem o teu cheiro. Gastei-o todo. Em inalações que nunca mais acabavam. Mas não te preocupes, o resto continua no mesmo sítio! Vai tudo permanecer como estava quando foste. Quando te foste, meu amor!

Estou velho. O espelho reflecte um demente! Ontem parti-o. Parti o espelho e parti o quadro da Maluda. Não o suportava mais! Nada ajuda. Nada aligeira! Tu tiraste-me tudo!
Pouco saio à rua. Quando saio levo o quispo que me deste. Sempre com o carapuço na cabeça. Seja Julho ou Janeiro! Já não conheço ninguém da nossa rua. Também só olho nos olhos os paralelos!
Às vezes, de longe a longe, ainda falo com o Pedro, mas não deixo que ele entre cá em casa. Ficamos a falar com a porta entreaberta e com o cadeado a fazer de Muro de Berlim. Nunca mais ninguém entrou na nossa casa!
Foi-me diagnosticada disrupção. Dizem que não é das melhores coisas que se pode ter.

Amor! Amor, não é um nome comum! Amor não se classifica morfologicamente. Era o que faltava! Amor és tu, amor!
Noutro dia, há quatro anos, li outra vez o Hemingway (o que passámos para comprar “Por quem os sinos dobram”, lembras-te?) e, a propósito não sei de quê, ele dizia que já não conseguia chorar. Que não tinha mais lágrimas! Eu tenho. Mesmo com os comprimidos, eu tenho. Muitas! Um tsunami delas. Uma coisa bíblica quase.  Choro todos os dias. É uma rotina que quase me faz sentir-te. Às vezes, quando choro com muita força, ouço-te a abraçares-me e a dizeres que isto vai passar. Falas tão baixinho! Mas não vai. Nem a falar baixinho. Não vai!

Desculpa, amor. Voltei a fumar! Fumo setenta cigarros todos os dias.  Há seis mil duzentos e cinco dias. Que são os dias que dezassete anos têm. Mas não há problema! O tabaco faz mal ao coração, mas eu já não tenho um!
Lembras-te quando me disseste que só me voltavas a beijar no dia em que a minha boca deixasse de saber a Marlboro Lights?

Apetece-me parar de escrever!
A dor é sempre a mesma, mas às vezes dói mais! Só não paro porque acabei de te ver nua. E quando te despias não era só ao meu ventre que adicionavas vida. Era à minha vida. A que tu alumiavas.
Esta fotografia devia-me fazer sorrir. Mas os meus maxilares endureceram. Ceifaram-lhes o nervo. Não têm expressão. Estão algemados. Presos. Numa cela sem  luz e sem espaço.
Apanharam perpétua.

Tirei-ta naquele hotel de Canterbury. Querias fazer amor ali.  Em frente à Catedral de Kent! Desse por onde desse. Uma coisa muito católica, portanto!

Inglaterra foi a viagem da nossa vida.
Lemos Óscar Wilde em Notting Hill. Desististe ao segundo parágrafo. Fomos a Wembley ver a final da taça e tu festejaste um golo do City na bancada do United. Em Buckingham, na changing of the guard , fizeste um manguito à rainha. Ligaram as sirenes e fugimos da polícia. Corremos em contramão. Perdi-te.  Encontrei-te a seguir. Na estátua de Eros, em Picadilly Circus!
Apareceste de repente.  Esventraste o nevoeiro e correste até mim debaixo dos fios de chuva! Arrepiei-me. Cresci mil metros. Fiquei da altura das montanhas.  Beijei-te. Com lábios, com língua, com saliva, com nariz! Abracei-te. O Big Ben parou.
A vida eras tu. Mulher. Uma só. Com cinco continentes e cinco oceanos dentro.

Não aguento, amor! Isto é uma simulação de Inferno! Não há Sade nem Anaïscaranguejolas ou pedras filosofais. Sou personagem de uma tragédia de Ésquilo. Morro em Tróia na fogueira de Hefestos. De trovador do amor a poeta do caos foram sete segundos!
Rais´parta a a poesia!
Rais´parta tudo, amor!

Não tenho mais forças! O comprimido apenas cria uma falsa ilusão de tranquilidade! E como é falsa, eu percebo-a. Só me enganava no início. Chega a doer mais com anestesia.
Se me visses agora não me vias a mim! Porque eu não sou este! Este é um doente. Cheio de tosse e de expectoração. Com os dedos amarelos. Com areia nos dentes. Com a cara encorrilhada. Com a Amália, de xaile preto, a cantar o Barco Negro nos meus olhos. Vou parar para fumar, porque os doentes fumam muito. Nem sabem que estão a fumar, mas fumam. Cigarro atrás de cigarro, até que o filtro desapareça nos dedos. Amarelos e imundos!
Fumo de tudo. Menos Marlboro Lights.

Morri no dia em que morreste!  O meu coração ainda bate. Mas é à capella. Sem a música do teu. Já não há hinos. Não há nada.

Não tenho fé, não tenho religião, não tenho Deus, por isso não tenho a ilusão de te voltar a ver! Se tivesse isso da fé, já não estava cá! Aliás, estar ou não estar é igual, porque se estou cá, não sei. Estou algures. A sudoeste de um sítio onde nunca mais te vou ver  a esventrar o nevoeiro. Onde nunca mais me vou arrepiar.
Isto não era para ser assim, amor!

Não era, pois não?

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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