Em plena crise política no Brasil: “Bela, recatada e ‘do lar’” – O que é isto???

“Bela, recatada e “do lar”” foram as palavras escolhidas para descrever Marcela Temer, a jovem esposa de Michel Temer, o atual vice-presidente do Brasil, que se prepara politicamente para assumir o cargo de Presidente (mal seja real a “retirada forçada” de Dilma, e caso nada mais aconteça, claro está…). Curiosamente o cargo de Presidente do Brasil jamais foi conseguido em eleições diretas pelo Partido de Michel Temer, apesar da sua representação significativa na sociedade brasileira…

No entanto, a minha reflexão não se prende com coisas tão importantes como a política brasileira “quente” neste momento, porque sobre essa a minha convicção é sempre e apenas a de devolver a palavra ao povo (seja o poder ou a corrupção “chegada” à esquerda ou à direita, liberal ou conservadora), e, creio eu, a única forma justa de obter mandatos é convocar novas eleições e eleger quem de direito, de acordo com o povo brasileiro, ou qualquer outro povo em iguais circunstâncias. A corrupção não é para mim compatível com os valores que defendo na Política, e, como tal, mais do que jogos de poder e de traição, de todas as partes envolvidas no processo, a solução justa, embora nem sempre do agrado dos Partidos no poder ou com ambições de poder, é a devolução da palavra ao povo, ouvindo a voz dos cidadãos e das cidadãs do Brasil nas ruas, e remetendo estas vozes para as urnas, onde se vota e onde se faz democraticamente justiça. Passando à frente, porque não quero – mesmo! – falar de situações de âmbito absolutamente político, o que a mim me incomoda é o ataque de género, ou ao género, e como quase sempre o ataque ao género feminino, bem disfarçado de política, mas revelador a “olho nu” de mais um brutal ataque ao género feminino, de forma arcaica, formatada e perigosa…

Surge este ataque por uma recente reportagem desenvolvida sobre a jovem esposa de Michel Temer, o tal senhor que aguarda a presidência, sem eleições claro está, que utilizou a expressão referida “bela, recatada e “do lar””…Pois claro que a jovem Marcela pode ser bonita, ou não, pode ser reservada e discreta por opção, ou pelo contrário poderia ser exuberante, pode dedicar o seu tempo à sua casa e descendência, ou poderia raramente estar em casa se por opção…Certo é que ninguém tem nada a ver com isso – é evidente. O que não se pode, ou não se deve, é dar esta jovem como exemplo do feminino para uma sociedade brasileira em crise, definindo estes tipo de atributos “bela, recatada, e “do lar””, como atributos dignos e honrados, que devem ser a aspiração de toda a jovem mulher…e isto foi o que esta reportagem simbolicamente acabou por fazer…Simbolicamente estes atributos neste contexto são “tornar objecto” a mulher…

Toda a história contada publicamente, com fundo patriarcal absolutamente constrangedor, sobre a jovem Marcela que aos 19 anos vai ao encontro do seu futuro esposo, quarenta e tal anos mais velho do que a própria, acompanhada da mãe, e que depois assume o seu “papel” no casamento, recatado e dedicado ao lar, é pelo menos bizarro no século XXI… Fico estarrecida ao perceber que há de alguma forma um enaltecimento a este papel submisso e quase perverso, da jovem mulher face ao homem poderoso, esposo-pai ou esposo-avô, e que este argumento de pseudo-ataque político a Dilma, a ainda Presidente do Brasil, por comparação tácita na reportagem entre a própria e a jovem Marcela, “bela e recatada (…)”… Dilma, uma mulher mais velha, que foi mulher da “resistência”, detida e torturada num passado não muito distante, por comparação ao casal “vice” Michel e Marcela Temer…

A minha indignação prende-se com este “pseudo-ataque” que nada tem de político, mas antes e sempre de ataque ao género feminino. Isto é realmente a parte mais grave…A política e o ataque político querem-se sérios e dignos, e até há motivos que cheguem para o fazer de forma honesta…sem recurso a este “entretenimento” que nos afasta do essencial, mas que nem por isso é menos mordaz e letal para os valores sociais e o respeito pelo papel da Mulher.
Numa sociedade conservadora, que ainda vê muitas mulheres serem “acusadas” socialmente, e não protegidas, pela forma de vestir, mesmo quando são vítimas de violação ou abusos, enaltecer a mulher “bela e recatada, “do lar””, casada e protegida pelo “poderoso senhor mais velho”, silenciosa e de “saia pelo joelho”, não me parece digno de evolução. Misturar estas coisas com a política em si mesma, que deveria reverte-se de um ataque sério e fundamentado e da vontade de um povo que deve ser soberano quanto a mim, é obtuso e causa-me a maior estranheza…

Não acho normal que se esteja a caminhar para isto na sociedade brasileira…espero que se coloque um travão a estes devaneios mediáticos…O “tornar objecto” a mulher é um mal demasiado duradouro no Mundo, e o seu justo lugar na sociedade, na política, na religião, nas artes e nas ciências, no mundo do trabalho e até nas famílias, tem sido duramente conquistado…Ainda não há muito tempo mulheres eram presas e mortas por lutarem pelo direito ao voto…Ainda hoje meninas e mulheres são torturadas e assassinadas por uma qualquer conduta condenada moral e legalmente por países e governos tidos como “atrasados e injustos” pela grande maioria da sociedade ocidental, e parte da sociedade oriental…

Que no meio da “incendiada política brasileira” se imiscuam padrões de referência sexistas, discriminatórios, que remetam para a mulher submissa e silenciada, é grave demais para ser ignorado…nem mesmo por um momento se pode brincar com símbolos destes numa sociedade onde ainda há poucos meses se espancou torturou e queimou nas ruas um(a) jovem transsexual que acabou por morrer no Hospital, onde esteve em sofrimento por mais de um mês…

Não se pode brincar com estas palavras que induzem no “inconsciente” das jovens e dos jovens brasileiros este “ideal de mulher” e ideal de casal, absolutamente devastador para o progresso defendido na sua simbólica bandeira…
Ninguém ficou indiferente, felizmente, e um pouco por toda a parte e sobretudo nas redes sociais, a mensagem foi repudiada de formas várias – e ainda bem que assim foi.

O problema é que se continuam a perpetuar estas anormalidades e estas aberrações do pensamento nas sociedades, e com isto, as mentalidades tardam a mudar, e a injustiça e o ataque de género, continua a ser tolerado. Basta! Nem por um momento devemos permitir em nome de coisa alguma que se inferiorize a mulher de forma habilmente camuflada sob a forma de enaltecimento e de elogio.

O recato e a vida austera, quando são opções, muitas vezes até espirituais e associadas à “castidade e pureza”, dizem respeito ao homem e à mulher que assim escolhem em liberdade os seus caminhos…quanto a isto ninguém tem nada a condenar certamente.

A vida mundana de experiência vivida, a boémia, podem ser escolhas livres de homens e mulheres que assim escolhem os seus caminhos – e são livres, naturalmente, de o fazer.
As escolhas de vida, e os modelos a serem seguidos, surgem da identificação de cada um e de cada uma com pessoas e percursos pessoais…

O que não se deve, nem se pode, é permitir este ataque ao género camuflado de ataque político…este ataque ao feminino mais uma vez, como tantas outras vezes ao longo da história…Isto não pode ser tolerado.
A mulher pode ser feia ou bonita, tal como o homem…O seu lugar é onde ela quiser, e escolher em liberdade, e não deve jamais enaltecer-se publicamente e na comunicação social, muito menos socialmente, qualquer “modelo feminino” que seja subalterno ao do homem…isso deverá ser tido em atenção sempre…principalmente em países da América do Sul e da América latina em geral, ou países do Sul da Europa, onde apesar do progresso e do avanço das mentalidades ainda existem muitas mentes perversas e subculturas instituídas, onde o papel da mulher é diminuído muitas vezes sob a forma estupidificante do elogio e do cavalheirismo…

Homem, Mulher, e qualquer identidade de género, são complementares e companheiros nas sociedades, são essenciais nas suas diferenças, e iguais em direitos e liberdades…Isto é o que define muitas vezes as sociedades evoluídas, onde a ordem e o progresso vingam e traçam um caminho…Onde as pessoas contam por aquilo de que são capazes e não pelos seus papéis obsoletos e desgastados num conservadorismo que toca a mediocridade de pensamento…

Um ataque político é legitimado e válido pelo seu conteúdo e não por estas questões não essenciais que são a “forma”, o disparate, o mundo das “princesinhas” que concretizam o seu “Édipo” das fases mais precoces, em relações adultas mas desiguais e patriarcais…

Em relação a esta última questão, também nada tenho contra as saias pelos joelhos e o “recato” (por acaso até prefiro calças ou saias até aos pés, honestamente, e isto é perfeitamente irrelevante na verdade…)…Nada tenho contra a diferença de idades entre parceiros, nem tenho nada a ver com isso na verdade…e até acho a jovem Marcela, uma jovem de notável beleza e provavelmente uma pessoa de bem…Por acaso sou republicana, mas nada tenho contra princesas, e até existem ao longo da história rainhas de incrível valor humano e político.

Só que nada disto importa…O que importa é que o ataque ao género, seja de forma violentamente frontal ou subrepticiamente incluso num pseudo-ataque político não pode jamais ser tolerado! O lugar da mulher, como o do homem, como o de qualquer identidade de género, é onde quiser, e válido por aquilo que faz e contribui para si mesmo e para o Mundo.

Voltar para trás, não!…Os danos à sociedade seriam demasiado severos e demasiado graves…Ordem e Progresso – a Bandeira do Brasil…que o seu povo, um povo irmão, consiga que tais valores prevaleçam, e não outros. Que sejam fortes e que ganhe a justiça.