Pluralidades – A polémica Pingo Doce e os telhados de vidro portugueses

Esta semana a comunicação social e os cidadãos ficaram inflamados com a notícia da venda da participação de 56%, que a Sociedade Francisco Manuel dos Santos detinha na Jerónimo Martins a uma sua subsidiária sedeada na Holanda. Resultado: a interpretação geral foi a de que esta empresa estaria a fugir ao fisco, e que, por conseguinte, incorria num acto de antipatriotismo descarado e condenável. Muitas pessoas organizaram-se de imediato a apelar a um boicote colectivo, a fim de castigar tamanha ousadia.

Na prática, porém, as coisas não são assim. Como já explicou Soares dos Santos à SIC Notícias, vão ser pagos os mesmos impostos que se pagavam anteriormente. Com uma diferença: dos 25% de IRS pagos a Portugal, 10% ficam na Holanda, e os restantes 15% em solo lusitano. Isto, desde que haja investimento no estrangeiro. Ou seja – todos os impostos que derivam da actividade portuguesa continuam a ser cobrados e liquidados como dantes. Nesse sentido, importa então saber o que motiva esta operação:

                   1 – Os dividendos são pagos à “casa-mãe”, agora holandesa, sujeita à isenção da tributação.

           2 – A estabilidade do regime fiscal holandês permite fazer uma racionalização segura do investimento, pois a probabilidade da alteração das “regras do jogo” é mínima, enquanto em Portugal a sua volatilidade é bem maior, comprometendo os planos financeiros das empresas. A segurança e confiança são muito maiores lá fora, porque sabem que à partida não existirão alterações súbitas às políticas fiscais que atrasam o crescimento das empresas.

           3 – Centenas de milhões de euros serão investidos no mercado internacional (Venezuela e Colômbia), países com os quais a Holanda tem acordos de dupla tributação e Portugal não. Esses acordos permitem um maior e mais facilitado investimento fora da União Europeia, que de outro modo não seria possível.

          4 – Numa altura em que as agências de notação apresentam uma influência galopante nos mercados financeiros, convém dizer que a Holanda é um país cuja dívida publica está seguramente classificada com AAA (Triple A), ao invés de Portugal, que se encontra em “lixo”. Isto é determinante para a concessão de financiamento bancário internacional, dado que, muitas vezes, as garantias dos bancos portugueses não são aceites no exterior, fruto da debilidade da conjuntura de crise que atravessamos.

Posto isto, pergunto-me como é possível que as virgens ofendidas promovam um boicote ao Pingo Doce, uma empresa que é Nacional, que comercializa e apoia os produtores nacionais, nas mais variadas áreas de consumo (frutas, legumes, vinhos, leite, etc.). Não entenderão, porventura, a pescadinha de rabo na boca? Que boicotar o Pingo Doce é boicotar Portugal e os produtores portugueses que vendem o que produzem a estes supermercados?

É que se é para fazer estragos, podemos também apontar armas a Belmiro de Azevedo, cujo Continente também tem sede fiscal na Holanda. Ou ao Lidl (alemão), ou às lojas dos chineses, e por aí fora. Temos que entender que uma vez situados na União Europeia e num mercado comum, diluem-se as barreiras geográficas. Logo, pretende-se aumentar o capital, uma vez que, afinal de contas, o objectivo de todas as empresas é gerar lucros. Com isso, até os consumidores saem a ganhar, afinal de contas, criam-se condições para a baixa de preços e uma maior competitividade que, só por acaso, se coligam com a excelente qualidade dos produtos Pingo Doce.

Precisamos, então, parar com o alarido. Sobretudo quando esse alarido parte de um país que, só por acaso, é dos países recordistas em fugas ao fisco. O Eurostat estima que todos os anos Portugal tem entre 10 a 14 mil milhões de dívidas fiscais para cobrar, que não são pagas pelos contribuintes. Valor esse que corresponde a 10% da riqueza produzida num ano, e que daria para pagar 10 pontes Vasco da Gama. Além disso, pendem sobre cada contribuinte dezenas de processos fiscais irregulares nas Finanças. É caso para dizer: “quando apontas um dedo a alguém, tens outros três a apontar para ti”. Afinal de contas, quantos não fogem ao fisco, ou fugeriam se pudessem?

Crónica de Joaquim Ferreira
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