Do Porto Brandão ao Porto, vai uma grande distância…

Prometi à minha mulher levá-la ao Porto, e no final, feitas as contas, o passeio ficou muito mais barato do que imaginava, porque pelo preço de pouco mais do que uma travessia de barco em direção à Trafaria, inferior ao custo da bandeirada do táxi, atravessámos o Tejo, e ainda fomos a tempo de apanhar o último cacilheiro da manhã que saía em direção a uma pequeníssima localidade piscatória à entrada da qual uma placa de cimento com um nome sugestivo remetia quem chegava por via terrestre para um destino mais a norte. Tratava-se de Porto Brandão, freguesia da Caparica no Concelho de Almada, um lugarejo rodeado de escarpas com pouco mais de uma centena de habitantes onde os únicos acontecimentos de que se ouvia falar era dos que se sabiam de lugares distantes através dos jornais que chegavam com um dia de atraso, e tão pacato que se viu logo pela minha cara à chegada que nunca estivera tão desejoso de conhecê-lo como ela.

Além de um café onde se comia massada de peixe e doutro onde um homem gordo acendia um fogareiro com a mesma satisfação com que um pirómano ateia fogo a uma floresta, só havia para ver um pequeno estabelecimento que servia de loja para a compra e venda de artigos relacionados com a pesca, e uma rua de casas de piso térreo que ia dar à praia, passando num largo rodeado de árvores com um coreto onde se avistava uma Igreja, artéria que devia ser a principal mas não muito comprida nem larga e onde certamente caberiam todos os moradores das ruelas adjacentes que, curiosos pela nossa chegada, tivessem vindo receber-nos com uma fanfarra da sociedade filarmónica local propositadamente para me animar.

Lisboa, 23 de Agosto de 1961. Praticamente desde que casámos, ela anda a chatear-me para sairmos de casa uns dias por conta da lua-de-mel que temos vindo a adiar, e irmos até ao Porto. Já passaram uns meses e por uma razão ou por outra eu invento uma desculpa para ficarmos em casa, como se uma viagem ao norte fosse tão cansativa que só para chegarmos ao destino tivéssemos que andar o dobro da distância que percorreríamos nos dois sentidos.

Da fama o Porto não se livra! Não vou mencionar nenhum dos acontecimentos históricos de que me lembro terem tido ali lugar e lhe deram uma importância ímpar no contexto nacional, apenas dizer que lhe conhecia muito bem a fama de cidade invicta que, às tentativas de invasão, sempre através do povo respondia aos agressores estrangeiros com um gesto de braço fletido e punho fechado que dispensa tradução, celebrizado por uma estatueta de barro criada pelo ceramista Bordalo Pinheiro que dispensa apresentação.

Mas não menos famosa do que quaisquer peças de artesanato que pudesse descrever, era a sua rica gastronomia, sendo que a maior iguaria da cidade era um prato confecionado com carne de vaca. Sabia-se que à mesa, a suculenta Francesinha batia aos pontos o Bitoque com ovo a cavalo que se comia nas melhores tascas de Lisboa e que o Cabrito Assado derrotava por KO umas simples Iscas à Portuguesa, mas eram as Tripas, feitas à base de dobrada de vitela, enchidos e feijão branco, que por cinco a zero ou mais batiam a mais direta, viesse ela de onde viesse, com hat-trick do lendário capitão Fernando Gomes ao intervalo, e um golo ao cair do pano no minuto 92.

Ao saborear aquela delícia, sabia-me pela vida, sentir a carne tenra desfazer-se na boca como se fosse um naco do lombo acabado de cozinhar, e no final molhar o pão no molho apetitoso que devia comer-se à colherada como uma sopa.

Numa ocasião, desci das Fontainhas à Foz por um prato de lentilhas. Brilhava uma lua redonda no céu como se fosse uma bola de cristal para dentro da qual eu espreitava tentando adivinhar como ia acabar a noite. Era véspera de uma noite de Santos populares que, em grande algazarra, faziam sair à rua milhares de pessoas que por uma causa comum falavam a uma só voz. Era ouvi-las cantar e gritar como se estivessem a esvair-se em alegria ou estivesse para breve o fim do tempo em que haviam sido obrigadas a permanecer em silêncio.

Sem ver ninguém conhecido à minha volta, descobri que estava por minha conta e risco num lugar onde para me orientar dava jeito que aparecesse, como aos reis magos a caminho de Belém, uma estrela-guia no céu igualzinha às que os ajudara a chegar a tempo ao seu destino na noite de Natal.

Tinha tanta pressa como os três de chegar, pois à minha espera, de mesa posta, estava a minha madrinha com uma refeição digna desse dia, excetuando a parte em que não havia filhoses nem Bolo-rei, que para ela, que era muito ligada à tradição, estavam tanto para a noite da consoada como o brinde, que aquele antigamente trazia no miolo, estava para premiar o felizardo a quem coubera sair na fatia da sorte.

Era seu afilhado desde tenra idade ou mais precisamente desde o dia em que fui batizado na Igreja da paróquia do bairro da Penha de França, em Lisboa, por um padre espanhol que se gabava de saber falar mais Línguas do que o próprio Papa, embora lamentasse não se saber fazer entender convenientemente em nenhum delas pelos seus paroquianos, que não hesitava em fazer cumprir a mais pesada penitência se os via, não refletirem no texto das suas homílias, e desviarem-se do caminho preconizado na Bíblia por Cristo e pelos Santos Apóstolos.

Acedera ao convite dela para passar um fim-de-semana que rotulei de pacato, apesar de ainda nessa noite termos saído e, à aventura, seguido um grupo de foliões que só parou para descansar nas escadinhas da Sé patriarcal ao amanhecer.

Não fiquei dessa vez a conhecer tão bem o Porto como gostaria, os seus monumentos colossais, as ruas da Baixa movimentadas como se fosse sempre hora de ponta, os cafés apinhados de gente até à porta fazendo fila para entrar … mas com 18 anos, ainda mais distante do que me achava de Lisboa naquele momento, estava eu de gostar de entrar e sair de museus e igrejas iguais aos que havia na capital onde também para qualquer lado que me virasse e detivesse o olhar tinha um à minha beira.

Mas apesar de ter disso uma estadia curta lembrava-me dela passo a passo como às etapas de um roteiro. Cada vez mais à medida que aumentava o desejo de viajar da minha da minha mulher, que anteriormente se contentava em ir de casa para o trabalho e, depois de darmos o nó, passou a querer continuar a fazê-lo mas com ligeiras alterações: com uma passagenzita de dois ou três dias na Serra da Estrela, se estivéssemos no Inverno ou nas praias de água caliente do Algarve se o calor apertasse, mesmo que a estação do ano não fosse o Verão.

Como diz o ditado “água mole em pedra dura tanto dá até que fura” e eu cedi. Acedi ao pedido dela que se transformava a cada passo numa exigência à qual era impossível continuar indiferente, e assim com mais de um mês de antecedência assinalámos a vermelho, com um círculo à volta do quadrado do dia, a data da partida no calendário que estava pendurado atrás da porta da cozinha, que ela prontamente retirou dali para o pôr num sítio onde não podia estar mais visível para mim, ou seja, a meia altura na parede defronte da mesa onde comíamos. E assim fomos vivendo, até que duas semanas antes de partirmos começaram os preparativos digamos “à séria”… e surgiram as primeiras surpresas.

Num dia em que foi às compras apareceu-me em casa com roupa nova. Um casaco de três quartos para o caso de as noites estarem frias e por causa delas eu poder desculpar-me para não levá-la a jantar fora; um vestido cumprido de gala para estrear ao almoço do segundo dia como se dali saíssemos diretamente para um sarau cultural; e, com o troco dos cinquenta escudos que lhe tinha dado, uma blusa para vestir com um par de calças pretas que lhe aumentavam o traseiro na proporção de um centímetro por cada número abaixo daquele que devia usar.

Depois veio a comida. Como não tinha cuidados especiais com a alimentação, fritou logo duas dúzias de rissóis de camarão e mais tarde engendrou um plano para, com uma simples posta de bacalhau corrente, fazer um tachinho de arroz e pataniscas que chegassem para a minha madrinha, enquanto estivéssemos em sua casa, comer até se fartar ou ficar convencida de que realmente era tão boa cozinheira como ela.

No dia marcado, saímos de casa tão cedo que ainda estava escuro. Na fase crescente, a lua testemunhava a alegria da minha mulher que, a meu lado de braço dado, sorria por tudo e por nada, sentindo-se feliz como nos primeiros dias em que saíramos juntos e ela ainda não conhecia os meus principais defeitos, que é como quem diz logo ao princípio de namorarmos.

A coberto do breu da noite, não precisei de disfarçar da minha cara-metade a vergonha que sentia. Estava a tempo de contar-lhe a verdade. Deu-me vontade de recuar e recuperar o dinheiro investido na roupa, mas mesmo que o talão da compra não tivesse sido rasgado e atirado para o lixo, duvido de que, para acalmar a fúria dela ao descobrir o sítio para onde ia, não tivesse que ir eu próprio a correr à loja para lhe trazer um vestido novo, com sapatos, mala e cinto a condizerem.

Estuguei o passo e rapidamente chegámos ao cais de embarque em Belém. Para desviar o rumo às perguntas com que me começava a atormentar, improvisei um elogio aos homens do mar e aos tripulantes das embarcações que víamos a chegar. Fitei um sujeito de boina maruja que auxiliava nas manobras de atracagem um barco robusto mas que trazia pouca gente, como se ao invés tivesse aspeto frágil e nele as pessoas tivessem mais receio de entrar do que eu.

Apesar de a minha mulher gesticular cada vez mais para me calar, continuei a falar como se sempre que alguém se cala consentisse nalguma coisa e desse meu silêncio ela pudesse induzir que eu consentia em que continuasse a xingar-me, acusando-me de estar a enganá-la desde que saíramos porta-fora.

Só quando a medo lhe confessei, sujeitando-me às consequências, que escolhera para visitarmos o Porto que ficava mais perto de casa, o Brandão, onde se podia chegar atravessando o Tejo numa canoa, entre Cacilhas e a Trafaria, é que pela primeira vez a vi em fúria a ponto de me atirar ao mar, e percebi o quanto uma pessoa pode dececionar outra.

Morrendo de vergonha, enfiei o rabinho entre as pernas e de orelhinha murcha fui a toque de caixa direitinho a casa, como se fosse um cachorro distraído que tinha urinado inadvertidamente na perna do dono, que confundira com um poste de iluminação apagado da via pública. Com ela a massacrar-me os ouvidos, regressámos pelo caminho mais longo a fim de ter tempo de perceber o erro em que tinha incorrido, e se durante a semana que se seguiu não fiquei a pão-e-água, não pensem que não recebi o merecido castigo, traduzido numa pesada pena que me valeu não ter podido voltar a ver pataniscas, rissóis e arroz de bacalhau na vida.

Fiquei tão enjoado que para, no prazo de uma semana, conseguir comer tudo o que leváramos em duas alcofas, desejei poder percorrer o país a pé de lés-a-lés, se por outra razão não fosse, para me abrir o apetite.

Aprendi a lição e da vez seguinte em que combinámos viajar, cruzei os braços e não tratei de nada. Deixei-a fazer tudo, inclusivamente almoço e jantar para quantos dias só eu sei, porque castigo tão duro, que tanto me fez arrepender, como aquele que tive de cumprir jamais esquecerei nem que viva feliz ao seu lado até perfazermos a bonita idade de 100 anos.