Portugal e Grécia. Uma história de amor! – João Nogueira

Fui a Roma porque os meus sonhos estavam a ganhar ferrugem. Fui à procura. Levei o coração como rosa-dos-ventos. E chegou!

Foi lá que te conheci. Cabelo preto, um fio para aqui, outro para ali, outro para acolá, cabelo anarco-sindicalista, nariz pequenino, olhos grandes. A cor não sei. Eu não sei as cores. Cinzentos, talvez. Ou verde-alface.

O teu rabinho – em forma de pera-rocha – descansava num beiral da Fontana di Trevi, quando te vi pela primeira vez. Fiquei sem saber para onde olhar. Queria olhar para todo o lado ao mesmo tempo. Olhos, cabelo, nariz pequenino, peito, mãos de dedos fininhos. Naquele quadro, a coisa mais feia era a Fontana, que é tão linda.

Soube que a minha vida estava circunscrita a ti no milésimo segundo que me disseste que te chamavas Maria.

– Sou o Tiago. De Portugal.

– Maria. Do mundo.

Pedi-te para te tirar uma fotografia, com a voz aos soluços. Perguntaste-me se eu era gago, a rir. A seguir disseste que sim.

Fizeste pose. Diagonalizaste o teu tronco de Afrodite, cravaste as mãos nas ancas e, mesmo com os cordões das All Star desapertados e sujos, foste o melhor retrato que disparei. Mas aqui eu já gostava de ti. Já tinhas dito “Maria”, um minuto antes.

Eras do mundo, mas eras grega. De Atenas.

Passeaste comigo. Disseste que eras de esquerda, que não acreditavas em Deus, que detestavas o Renascimento e que o Coliseu era um camafeu. Disse-te que, se calhar, estavas na cidade errada. Riste-te. Trinta e dois dentes brancos! É obra.

Falei-te de Portugal, a seguir. Perguntei-te se já lá tinhas ido. Disseste que não, só sabias que era o país da Fanny. Disse-te que já calculava.

Ensinei-te palavrões, com sotaque do Norte. Garanto-te: nunca ouvi alguém a dizer “Caiaio!” como tu, Maria!

Sete quarteirões depois da Fontana di Trevi já éramos tu cá tu lá. Ganhei coragem e disse que a tua cara era linda como o Partenon. Achaste a comparação estúpida. A seguir disse-te que parecias Corfu, a ilha mais bonita da Grécia. Achaste a analogia ainda mais estúpida. Pediste-me, pelas alminhas, para parar com figuras de estilo.

Alugamos uma lambreta. Tu conduzes. O limite de velocidade é 40. Tu andas a 80. Ziguezagueias nos becos de Roma, o vento bate-me na cara. Estou vivo outra vez!

À noite, pela fresquinha, uma senhora loira, de repas, fala alemão na televisão. Chamas-lhe Pute. Assim, em francês.

Faltam dois dias para irmos embora. Cada um à sua vida. Sou católico, peço-te para vires comigo ver o Papa. Dizes doze vezes que não. À décima terceira dizes que sim à primeira.

– Tiago, o que é isso de Deus?

– É uma coisa muito grande.

– Mostra-me.

– Estás disponível para O ver?

– Sim.

– Ele está no meio de nós!

– Então que saia! Pede lá à tua entidade invisível para nos deixar sozinhos. Ele que se vá meter no meio de outros.

– Só acreditas no que vês, Maria?

A  vida é bonita. Tenho alguém a quem amar. O resto é secundário.

Dia de ver o Papa. Combinamos às dez. Apareço às dez menos vinte. Tu chegas às dez e dez. Vens no teu vagar.

Praça de S. Pedro. Fiéis e lenços brancos. O Papa. Em uníssono, milhares de gargantas cantavam o Padre nostro che sei nei cieli. Dois segundos depois do ámen, lambuzada de stracciatella, levantas um cartaz .

Tremo. Não quero olhar. Conheço-te há um dia, mas conheço-te de ginjeira…

Signor Papa, Ciao, come stai? io sono qui solo perché io amo troppo questo ragazzo. Altrimenti non sarebbe mai. Abbraccio.

Olho. Traduzo.

“Senhor Papa, olá, como está? Eu só estou aqui porque amo este rapaz. Caso contrário jamais estaria”. Um abraço.

O Papa tosse. Pede uns binóculos ao Cardeal que está mais à mão.

Os fiéis murmuram.

Dá-me uma cólica. Vou de moreno a branco em um vírgula sete segundos.

O Papa aponta-te o dedo. A cólica agudiza-se.

– “Irmã, se não queres estar aqui, não és obrigada”

 – Senhor, o seu Deus não diz que temos de fazer sacrifícios? Ei-lo…

Parece-me óbvio que a cólica vai traduzir-se numa cena desagradável. Lamento, somos todos iguais!

Silêncio…

Mais silêncio…

Bocas abertas…

Silêncio ensurdecedor. Confrangedor…

O Papa sorri.

A seguir ri.

Depois desfaz-se em gargalhadas.

A cólica ameniza.

– Amo-te!

– Amo-te!

A cólica emigra.

Deste-me um beijo. Sabia a chicla de limão. Quarenta  e sete segundos de lábios e língua.

Não me sentia tão feliz desde o tempo em que flutuava, de costas, com os bracitos abertos, no líquido amniótico da minha mãe. Voltei a nascer. Só que, agora, em vez de pesar 2 quilos setecentos e cinquenta, nasci com 77. E sem palmada no rabo!

A seguir fugiste, a rir, à boleia da tua helénica figura.

Fui atrás, claro. O morcão da relação era eu.

Correste, correste, correste. Roubaste a burca a uma muçulmana, tapaste a cara e continuaste. Eu, de língua de fora, olhava para ti, Maria…a correr, de burca e de mamocas quase ao léu, a saltar. Amo-te.

Último dia. Despedidas. Abraças-me. Não com os braços: com os olhos…onde passeavam fantasmas!

Queria dizer-te tudo. Que da cave ao sótão do meu, lá estavas tu, com a tua fila de dentes brancos e os teus olhos lindos de uma cor qualquer.

Mas tu foste embora. A correr.

Um adeus para sempre. Que tragédia! Vi-me grego.

Não.

Um ano e muitos meses depois, vi-te, no estrangeiro. A probabilidade era improvável. Mas, caramba, eu vi-te.

Eras emigrante e eu também. Encontrei-te no estrangeiro, porque quando se emigra não se vai para um país. Vai-se para o estrangeiro!

Chorámos. Eu em português, tu em grego. Nesse dia disseste-me que viste Deus.

Ali, no estrangeiro, ficamos a ser o país um do outro.

Na televisão, uma senhora loira, de repas, fala alemão na televisão. Atrás dela, um senhor alto, magro e bem-parecido. Tinha-me chamado piegas, meses antes.

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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