A praia do nosso contentamento

Vi passar por mim, veloz, uma camioneta na direção da praia, levando de férias crianças a caminho de uma colónia balnear, na proximidade de uma cidade tão longe de casa que se de antemão a maioria delas soubesse para onde ia, refletiria sobre se valeria a pena continuar a queixar-se da distância que percorria diariamente de carro para ir às aulas, culpando os pais que os levavam pelos dias em que chegavam atrasados à escola e eram postos a cumprir castigo pela professora como se de uma penitência se tratasse.

Era uma dessas camionetas de cinquenta e tantos lugares sentados que fazem serviço regular de transporte de passageiros durante o ano mas que nesta altura são requisitadas, e com elas os seus motoristas, para fazer serviços de outro género.

Nas laterais do veículo, a todo o comprimento, reparei que estava pintada uma faixa branca onde havia espaço suficiente por debaixo do nome da empresa à qual ela pertencia, para inscrever uma legenda. A desse dia, porque era festivo para todos, seria uma frase como aquelas alusivas a grandes acontecimentos, escrita a tinta florescente e que ilustrasse o estado de euforia de alunos e professores, posta a circular sob uma fotografia de grupo tirada à chegada, no momento em que surpreendentemente os mais novos tivessem a esperá-los pais, irmãos e avós, esfusiantes por vê-los como se não tivessem estado em contacto permanente com eles nos últimos quinze dias.

Anualmente, na habitual azáfama que precedia o fecho do ano letivo, desdobravam-se todas as pessoas envolvidas na tentativa de ver coroado o esforço despendido ao longo do ano. Por isso, estas idas à praia, destinadas somente aos alunos do 4º ano que obtinham aproveitamento, faziam parte das ações de professores e encarregados de educação destinadas a premiar os melhores alunos.

No pátio do recreio da escola do ensino básico Rainha Santa, nos arredores de Lisboa, diante do guarda-redes de olhar preso na trajetória da bola disparada pelo pé canhoto do adversário em direção à sua baliza, Asdrúbal, que era acusado de ser sempre o último defesa a colocar em jogo o avançado da equipa contrária, meditava nas consequências que teria para a moral dos colegas a quarta derrota consecutiva da sua equipa em outras tantas partidas disputadas para o campeonato interescolar. Tinha a pele do rosto e dos braços curtida de jogar diretamente ao sol na rua e uma figura de jogador que bem podia ter sido recortada de alguma caderneta de cromos. De calções abaixo do joelho e meias caídas sobre as botas ortopédicas, onde enfiava os pés chatos à nascença, de nervos à flor da pele imitava um jogador famoso reclamando da posição dos colegas em campo, que corriam menos do que ele atrás da bola e o mandavam ainda por cima jogar nas posições mais recuadas onde aquela, quando chegava, era imediatamente por ele, e sem apelo nem agravo, pontapeada para a dianteira onde outros deveriam pensar em como mantê-la afastada da zona de perigo.

Não muito afastadas deles, e sempre que também a elas o bom tempo permitia brincar no exterior, ao mesmo tempo que os rapazes organizavam estes campeonatos, quase tão importantes para a afirmação individual do ego dos seus participantes como coletivamente para quem assistia aos jogos nos estádios em que mediam forças os ídolos dos seus clubes, as meninas divertiam-se jogando à macaca, saltando à corda ou competindo entre si em jogos onde no fim ganhava, de entre todas, a que provava ser mais forte , capaz de saltar mais alto ou conseguir chegar mais longe do que simplesmente afirmavam, quando para causarem inveja entre si desatava cada uma a gabar-se de ser a melhor.

Do alpendre à sombra, outrora mandado construir para proteger as crianças da intempérie, havia sempre a vigiá-las um par de olhos de lince de alguma auxiliar astuta que tinha essa característica em comum com os demais funcionários da escola. No início do Verão, já com o encerramento das aulas à distância de uma reunião entre professores e encarregados de educação, juntavam-se-lhes alguns monitores de férias para acompanhá-los e às crianças até à praia.

Em número reduzido para poupar nos custos, estes eram na sua maioria rapazes corpulentos dos quais não desviavam o olhar as raparigas que seguiam todos os seus passos, provando que desde tenra idade às mulheres era mais fácil do que aos seus congéneres do chamado sexo forte, executar sem falhas duas tarefas ao mesmo tempo, que no caso era dedicar uma atenção especial aos graúdos sem deixar de tomar conta dos mais pequenos.

A Asdrúbal tanto incomodavam uns como outros se insistissem em dar-lhe ordens que jamais lhe passaria pela cabeça cumprir. Desagradavam-lhe as regras mandadas cumprir em nome dos pais que no seu entender eram as últimas pessoas a importarem-se com ele por se portar pior na rua do que em casa, desde que a assistir não estivesse a irmã, ainda muito nova para ir à escola, mas suscetível de seguir os maus exemplos que ele pudesse dar.

Quando ao longo do ano iam de passeio a algum parque onde houvesse diversões, que era o único sítio onde se podia divertir um rapazinho de oito anos e cada vez mais os adultos porque nos jardins abertos ao público não era ainda necessário pagar à entrada, sentavam-no na camioneta ao lado de um menino de óculos de lente de fundo de garrafa de vinho, daquelas que aos adultos para conseguirem enxerga-lo é preciso esvaziá-la de preferência para dentro de um copo na companhia de alguns amigos. Os pais desse menino eram oriundos de África e chegaram de Angola com o primeiro contingente de retornados que em Lisboa só através da RTP e da rádio passaram a ter notícias dos familiares que por lá ficaram. Tinha o tom de pele que dava a uma pessoa alta o porte de um coqueiro e semicerrava os olhos ao efeito frontal do sol que sob os aros lhe desenhava sem compasso dois círculos perfeitos.

Nos dias em que não havia jogatina de futebol, em conjunto, jogassem na mesma equipa ou não, os rapazes, que nem sempre eram a melhor companhia uns dos outros, juntavam-se à distância de não serem vistos pelas meninas e punham-se a falar delas, porém, tão baixinho que continuaria sem saber nada a respeito de nenhuma quem não passasse tão perto deles que quase pudesse roçar-lhes as orelhas pelo nariz.

De há dois anos a esta parte, mercê de um protocolo assinado com uma instituição que disponibilizava alojamento junto ao mar, fora possível à escola mostrar a bem mais do que um punhado de alunos do 4º ano, que recompensava mais não faltar às aulas e passar de ano do que ficar em casa a dormir e a sonhar com a existência de uma praia fantástica que podiam vir a conhecer de verdade.

No Algarve, exatamente a meio caminho entre Lagos e Portimão, numa baía esculpida pelo mar de encontro à rocha calcária, situava-se uma praia de areia fina soprada do deserto mais longínquo por uma brisa suave e água translúcida como se brotasse pura da nascente de uma montanha.

Era lá que rapazes e raparigas brincavam sentindo-se à vontade, e só não tanto como se estivessem em casa, por causa da impressão que tinham de não ter deixado o recreio da escola enquanto tivessem a vigiar-lhes, sobretudo as brincadeiras na água, as auxiliares autoritárias como se receassem que daqueles que no seu entender se portavam mal elas pudessem ir queixar-se aos pais quando ao final do dia os fossem buscar.

Era a pensar na circunstância de haver coisas que não aconteciam só aos outros, que deitado na sua cama Asdrúbal meditava no dia em que também iria nesse grupo à praia. Punha-se a sonhar acordado, de olhos fechados não porque tivesse receio do escuro mas para não confundir com a claridade de um mero candeeiro da via pública, a luz desse farol que havia lá fora e atravessava a persiana na horizontal iluminando o teto do quarto às escuras.

Nesses momentos, ele gostava de se espreguiçar na cama com gestos que na rua dificilmente passariam despercebidos e de calcorrear o corpo com ambas as mãos à procura de sinais precoces de uma adolescência que tardaria tanto a chegar como a compreensão dele para esse facto.

Se tudo corresse à velocidade que ele desejava, um dia tomaria ele o lugar daquelas crianças na camioneta e no seu, mas não necessariamente na mesma cama, outras meninas e meninos ficariam a sonhar com essa oportunidade que lhes seria dada. E ele, em vez de ficar assinalado como um aluno de risco por chumbar de ano, iria para o 5º, mudaria de escola e teria à sua espera outras crianças para brincar, bem diferentes talvez dos colegas que poderia vir a ter na sala de apoio ao estudo que certamente lhe recomendariam ou dos que com ele jogaram futebol na mesma equipa e provaram não ser tão bons como ele que na vida se sabia defender mas também atacar as oportunidades.