Praia: uma crítica cultural – Amílcar Monteiro

  • A típica família de tugas grunhos puro-sangue, composta por cerca de 300 elementos, partilhando entre si pêssegos e cervejas que devoram de forma alarve, enquanto têm a gentileza de partilhar, com todos os outros veraneantes, informações valiosas como “acho que vou à àgua”, “o sol ‘tá quente”, “a água ‘tá fria”, “vou comer” ou “’tou cheio de areia”;
  • A não menos clássica família de emigrantes, na qual existem criancinhas adoráveis com nomes como Vanessa Marie, cujos elementos comunicam entre si aos gritos num dialecto desconhecido que oscila entre o francês e o português, ostentando o seu vasto império de geleiras, chapéus-de-sol, corta-ventos, cadeiras de praia e falta de educação que não será nunca corrigida por viverem no estrangeiro;

  • Os seres de ginásio, que passam o ano inteiro a aperfeiçoar os peitorais, os bíceps, os tríceps, os glúteos e uma série de outros músculos que só os fisioterapeutas e os fisiatras deveriam conhecer, para poderem satisfazer o propósito maior da sua existência: permanecerem estáticos, à beira-mar, a mostrar os músculos à praia inteira;
  • Os leitores de Verão, que se deitam na sua toalha e fazem questão de mostrar, a toda a praia, o título do livro que estão a ler. Normalmente, é o mais recente best-seller da moda que é obrigatório conhecer, para que depois possam comentar com outros asnos que “adoraram o livro”, mesmo que não tenham percebido patavina ou que o livro não passe de lixo produzido em massa que um conjunto de pseudo-intelectuais resolveu definir como “uma lição de vida”;

  • Os seres cor-de-laranja, que no seu primeiro dia de praia já se apresentam com um bronzeado de 3 meses de solário e que, apesar disso, insistem em acentuá-lo ainda mais, deitando-se sobre o sol escaldante sem protector solar, esturricando com o fervor de quem considera que conseguir um bronzeado é um feito notável apenas ao alcance de alguns;
  •  O híbrido seres cor-de-laranja de ginásio;

  • O desfile infindável de criaturas detentoras de corpos flácidos e disformes, e de uma ausência de consciência em relação a si mesmos que não lhes permite perceber que passearem-se em trajes reduzidos, como fios-dentais ou sungas, não só não as favorece como pode também provocar traumas incuráveis em pessoas que tenham olhos.

 

 

  • O grupo de amigas que joga raquetes, volley, ou outro qualquer desporto de praia que transforme os seus seios em iô-iôs de prazer e as force a dobrarem-se para apanhar uma bola, enquanto o seu  rabo reluz ao sol;
  • Uma pequena criança – vamos chamar-lhe Vanessa Marie – que corre livremente pela praia, explorando-a com a sua curiosidade natural, mexendo na areia e brincando com conchinhas;
  • Um desmoronamento de rochas que esmaga a família inteira de tugas grunhos puro-sangue, pois estes resolveram ignorar o aviso “Perigo: Queda de Rochas”. É a selecção natural no seu estado mais puro;
  • Esse momento poético, repleto de magia, que é o despoletar de um melanoma num ser cor-de-laranja. E, se observarmos com atenção e paciência, podemos mesmo vê-lo a desenvolver-se;

  • O grito inocente de uma criança que se magoou. Olhem, é a pequena Vanessa Marie e parece que se picou numa concha. Não, esperem, afinal foi numa seringa. E que divertido é escutar os gritos de pânico de toda a família de emigrantes – curiosamente, gritos em português – enquanto tentam abandonar a praia depressa para levar a pequena Vanessa Marie a um hospital, mas que primeiro têm de desmontar os chapéus-de-sol, guardar os corta-ventos, fechar as geleiras e arrumar as cadeiras de praia. Pessoalmente, gosto de observar esta correria desenfreada enquanto ouço, na minha mente, uma daquelas músicas dos filmes mudos;
  • Uma bola de futebol que sai disparada e atinge, com extrema violência, a boca de um dos leitores de Verão, fazendo-o passar da leitura da obra “Comer, Orar e Amar”, para a vivência da experiência “Comer Com Uma Bola Nos Dentes, Sangrar e Gritar”;

  • A brisa, ao início agradável, que ganha força e faz com que um chapéu-de-sol amarelo se solte da areia e se transforme num espigão voador descontrolado, provocando um reboliço geral de pessoas que se desviam e de outras que o tentam apanhar, cujo trajecto termina, ironicamente, com o espigão cravado nos peitorais bem-definidos de um dos seres cor-de-laranja de ginásio. Felizmente, o chapéu-de-sol é amarelo e por isso condiz com o cor-de-laranja da pele, o vermelho do sangue e o castanho do melanoma.


Crónica de Amílcar Monteiro
O Idiota da Aldeia
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