Prato do dia

Esta semana abriu no meu bairro um restaurante que só serve comida feita de véspera.

A brilhantíssima ideia foi de um amigo meu e funciona no antigo espaço de uma loja do chinês, onde tudo o que as pessoas viam empilhado em caixotes à entrada compravam, porque pensavam que estava em promoção.

É um sujeito bonacheirão que até, por estes dias, ter reencontrado a subir a minha rua, não via somente há dias. Reparei que tinha um andar novo e confesso que roçava a estupidez o hábito de calçar meias de algodão com sandálias no verão, mas não passara tempo suficiente, pensei, para poder concluir se tinha mudado muito em relação à última vez em que estivéramos juntos a beber um copo.

A mulher devia ser a cozinheira de serviço. Era bastante roliça e dava nas vistas de braço dado com ele, como se temesse perdê-lo, não percebendo que entre os dois ela é que fazia falta e sem si, a fritar pataniscas e pastéis de bacalhau, o negócio não tinha pernas para andar.

Fiquei estupefacto quando me foi apresentada a ideia, de cujo sucesso desconfiei inicialmente. Um novo conceito de refeição passava, a meu ver, por confecionar novos pratos a partir de novas combinações de ingredientes e nunca por cozinhar com vinte e quatro horas de antecedência uma sopa de feijão que, ainda por cima para quem tem o paladar apurado, sabe muito melhor comer dali a dois ou três dias.

Foi cuidadoso na escolha do nome. “O Comilão de Salvaterra” invoca o gosto pela comida que nos portugueses passou a ser característico quando começaram a sair do país e a provar a que se fazia lá fora.

Como o espaço é diminuto, só lá cabem meia dúzia de mesas e algumas cadeiras, para que quem lá vá se sinta como se estivesse em casa, mas não sendo preciso, no final da refeição, que cada um se levante, pegue no seu prato e o deixe para ser lavado na bancada da cozinha.

A decoração, que deve ser ao gosto do meu amigo, é atípica. Nas paredes, por entre pósteres autografados de futebolistas, há fotografias suas do tempo em que aos dezassete anos participava em provas de karting e um ou outro diploma, mas sem que se lhes possa atribuir utilidade, pois em nenhum está referido que tirou um curso de Gestão de Empresas que lhe seja útil para gerir bem o seu negócio.

Em cada mesa, existe um castiçal para duas velas, como se fosse para acendê-las alternadamente e um raminho de violetas, para o caso de ter maior possibilidade de êxito, alguém que decida fazer uma declaração de amor e se tenha esquecido de passar numa florista para comprá-las.

No dia da inauguração, no ar o que sentia ainda era o cheiro de tinta fresca e na casa de banho, um toalheiro de plástico por colocar dava o mote para os outros trabalhos de manutenção que estavam por executar. As luzinhas laterais do espelho estavam apagadas, como se preferível do que mostrar aos clientes como eles eram, fosse esconder-lhes no rosto as imperfeições como as rugas e os pontos negros. A saboneteira funcionava, mas o difusor estava mal regulado e rapidamente lhes enchia as mãos de uma substância viscosa como aquela que para tirar, os tinha obrigado a ir lavá-las.

Recordo-me de que era sábado e no dia seguinte não ia trabalhar. Podia levantar-me tarde, almoçar com o meu filho e só pensar em devolvê-lo à mãe quando me apetecesse irritá-la, entregando-o uma ou duas horas para lá do horário fixado pelo Juiz que determinou os termos da nossa separação.

Como nestas coisas é habitual, para a inauguração do restaurante não podiam deixar de ser convidadas algumas individualidades locais. Assim, estiveram presentes dois bombeiros, um polícia, um mestre-escola e até um rapaz que trabalha na televisão mas está de férias e só não gravou tudo no smartphone para apresentar depois, porque achou que não vinha a propósito anunciar a abertura de um restaurante que preparava comida de véspera, com duas semanas de atraso.

A certa altura, posicionou-se ao meu lado um sujeito escanzelado que parecia preso por arames como uma marioneta. Abanava por todo o lado como se tivesse dentro de si um íman que o atraísse simultaneamente em sentidos opostos. Falava de boca cheia e não era tarefa fácil prestar atenção ao que dizia, de olhos postos nas mãos dele agarradas a duas azevias como boias de salvação num lugar perigoso de onde nunca pensou sair com vida. Falava com entusiasmo crescente da futura participação portuguesa num europeu de futebol, em que na defesa do título conquistado em França, finalmente jogasse ao ataque.

Encaminhei-me para a rua e acendi um cigarro que, à medida que sugava e os lábios se aproximavam do filtro, me devolvia a paz de espírito necessária para não me arrepender de ter virado costas à travessa dos pastéis de bacalhau, que deviam estar do meu agrado pois a fumegar aparentavam ter sido acabados de fritar.

Voltei lá na terça-feira ao jantar e não me recordo de tê-lo ouvido dizer que voltasse no dia seguinte para comer o resto que sobrou da dose de choco frito que dava para dois. Talvez queira transpor para a culinária a máxima aplicada ao amor e que diz que por muito bem que venha servida a dose, para um é pouco, dois é bom e três é demais, a menos que sejam pessoas de comer poucochinho.