Praxe: Sim ou Não?

Há certos temas que são tão polémicos que nos garantem que a pessoa ao nosso lado ou se tornará nossa amiga ou nossa inimiga. O meio-termo não existe quando falamos de religião, de política, de futebol ou mesmo de praxe. Claro que esta lista de temas é demasiado genérica (na realidade quase qualquer tema é passível de provocar uma convulsão social, tão grande, que nos faz temer pela nossa segurança). E é precisamente de praxe que falarei esta semana no “Desnecessariamente Complicado”. Afinal de contas a praxe é positiva ou negativa? Os caloiros recém-entrados na Universidade devem de ir à praxe ou fugir da mesma a sete pés? Esta, e muitas outras questões, dominam a minha crónica desta semana.

Antes de mais é necessário fazer uma nota prévia. O comum leitor está, nesta altura, a perguntar: “Mas qual a razão para falares de praxe esta semana?”. Bem, para começar não é preciso existir uma razão para se falar de praxe, é um daqueles temas intemporais que pode ser discutido em qualquer altura do ano. Mas, já que perguntaram, eu respondo: o tema desta semana é a praxe porque foi editado, muito recentemente, um livro intitulado “Desobedecer à praxe” (dos autores João Mineiro e Bruno Moraes Cabral). Ora dado que eu sou um defensor da praxe é óbvio que isto foi o motivo perfeito.

Quanto livro podemos dizer que cabe no bolso das calças, que a capa é amarela, e que tem em destaque uma colher de pau partida. Basicamente mais simbólico que isto era difícil. No início do livro pode ler-se uma frase que certamente deixará muitos adolescentes e adultos, adeptos da praxe, revoltados: “A proibição tem sido uma via descartada pelo conjunto dos partidos, contrariamente ao que sucedeu em alguns países onde a violência crescente impôs a criminalização destas práticas”. A partir desta frase é possível perceber qual o tom de todo o livro (até porque quando o início pede, ainda que de forma dissimulada é certo, a proibição da praxe só podemos ter medo do resto…).

Os leitores que são anti-praxe (ou que, por algum motivo, não concordam com a praxe) por esta altura já estão a dizer: “ah, mas a praxe tem matado jovens, como é que podes defender algo que mata adolescentes?”. Primeiro: se esse é o vosso primeiro argumento então isso significa, desde já, que vos ganharei esta “discussão”. Sim porque isso revela que não sabem o que é a praxe na sua essência (se o soubessem começariam por aí e não pelas mortes). Segundo: por essa ordem de ideias antes de nos preocuparmos com a praxe temos de proibir as selfies. Sim, leram bem: as selfies! Porquê? Porque só nos primeiros seis meses de 2015 morreram mais pessoas vítimas de selfies do que vitimas de ataques de tubarões. Sim, ataques de tubarões! E quantas pessoas morreram (ou estiveram à beira da morte) por causa da praxe desde o passado mês de Janeiro? Pois….zero. Logo, primeiro preocupem-se com a proibição das selfies e depois logo falamos sobre a praxe, ok?

Mas voltando às mortes. Sim, elas aconteceram. Sim, são lamentáveis. E sim, os responsáveis deviam de ser culpados por aquilo que fizeram. Mas sejamos sinceros: não morrem pessoas em todas as áreas? Então porque é que só a praxe é que tem de ser proibida? Por exemplo: em 2011 faleceu uma adolescente num exercício no Dia da Defesa Nacional. Tinha 18 anos, chamava-se Ana Rita Lucas e fazia slide quando um cabo se soltou. Caiu de uma altura de cinco a sete metros e faleceu. Já este ano os militares em causa foram absolvidos. Dito isto….perdeu-se uma vida e ninguém falou em proibir este tipo de exercícios porquê? O Dia da Defesa Nacional deixou de ser efectuado? Obviamente que não. Aliás, este caso acabou por passar praticamente ao lado de todos os meios de comunicação social. Porque raio ninguém veio defender a vida desta jovem ou ofender-se com o facto de ninguém ter sido dado como culpado?

Vamos a outro exemplo. Nos estádios de futebol nacionais (e nas respectivas imediações) já faleceram várias pessoas ao longo dos últimos anos. Seja em confrontos entre claques, ou com as forças de segurança, quando há um jogo grande é certinho que haverá feridos (e quem sabe mortos). E, em algum momento, se pediu a proibição dos jogos de futebol? Obviamente que não. O que é se tem tentado fazer? Arranjar formas de encontrar, e punir, os culpados pelos distúrbios. E isso faz sentido, certo? Claro que sim, afinal de contas a culpa é do público que não se sabe comportar, não do desporto em si ou dos restantes espectadores.

Então se concordam com tudo o que é dito acima porque é que a mesma lógica não é aplicada à praxe? Porque é que a primeira medida que é falada é a proibição pura e dura? Não faria mais sentido encontrar uma forma de regulamentar a praxe e de poder punir os que não seguem as regras? É que se por um lado existe muita gente que nunca devia de vestir o traje académico, por outro, a verdade é que essas pessoas não passam de uma pequena percentagem do total de trajados.

Existem tantos imbecis na praxe como fora dela. Por cada caloiro mal-educado existe um colega de trabalho que passa por cima de nós para obter uma promoção. Por cada trajado que passa dos limites existe um chefe/patrão que nos obriga a fazer horas extraordinárias (e que não as paga, evidentemente) ou que nos exige uma tarefa que sabe que não vamos conseguir executar em tão pouco tempo. A praxe é o espelho da sociedade e, como tal, tem boas e más pessoas. Uns nasceram para envergar o traje enquanto outros nunca deviam sequer sentir o peso da capa nos braços/ombros. Mas isso é perfeitamente normal dado que nem todos nascemos para o mesmo. Eu posso ser um óptimo agricultor e ser um péssimo mecânico. E isso tem algum mal? Obviamente que não. Pronto, com a praxe é igual: nem todos têm perfil/personalidade para ser caloiro ou trajado. E mais: ser um bom caloiro não significa ser, no futuro, um bom trajado. Uma coisa nem sempre está directamente relacionada com a outra.

Aquilo que mais me enerva quando se fala de praxe é a parcialidade da comunicação social. Sim, existem maus exemplos, mas também existem bons. Porque é que apenas é mostrado o lado mau? Porque é que a praxe apenas é notícia quando existe uma polémica? Porque é que não é dado tempo de antena a casos onde a praxe é aplicada de forma correcta e ajuda a formar melhores adolescentes/adultos? E porque é que apenas falam de praxe pessoas que não passaram por ela?

Eu nunca fui engenheiro na vida. Nunca estudei para tal. Não tenho sequer noção da dificuldade da profissão, por exemplo. Tendo isto em conta: fará sentido eu criticar os engenheiros sem pelo menos tentar perceber o seu ponto de vista? Claro que não faz sentido, é só parvo. Então porque é que o mesmo não vale para a praxe? Porque é que só fala da praxe quem nunca sequer foi caloiro ou envergou um traje académico? E que tal colocar ex-membros da praxe a falar dela?

Eu sou a favor da praxe, é um facto, mas não de qualquer praxe. Apoio, e defendo, a praxe que eu conheço (que me recebeu enquanto caloiro e me permitiu ser veterano) e que é praticada na universidade que me formou. Essa praxe garanto-vos que é boa e que só tem efeitos positivos. Ninguém foi obrigado a ir à praxe ou a fazer seja o que for (só lá estava quem queria e sempre fomos livres de a abandonar quando bem entendêssemos). “Ah, mas noutros locais não é assim, também defendes essa praxe?”. Claro que não, daí ter dito que defendo a praxe que conheço. Quem pratica a praxe de forma errada deve ser chamado à atenção, ou mesmo punido, tal como o é na sociedade em geral! Têm de existir regras, e penas, para quem não as cumprir, é simples!

Mas ainda não discutimos parte do “problema” da praxe. Só lá está quem quer, certo? Então se acontecem abusos parte da responsabilidade também é dos alunos. Se um trajado me mandasse beber litros, e litros e litros, de álcool eu diria que não. Mas a partir do momento em que aceitasse cumprir as ordens desse trajado também teria parte da culpa! Custa ouvir isto, eu sei que custa, mas é a mais pura das verdades. A luta da sociedade tem de ser consciencializar os adolescentes e mostrar-lhes o que devem, ou não, fazer (para, por exemplo, aprenderem a dizer “não”) e nunca a proibição da praxe!

Se não sabem ficam a saber que existe em Portugal um endereço de email para o qual podem endereçar queixas de praxes abusivas. Ora desde Setembro foram feitas cinco queixas para esse endereço. Dessas cinco apenas três eram casos reais de praxe abusiva. Até agora todas as queixas recebidas foram tratadas no interior das instituições. E dito isto pergunto eu: três queixas num universo de largos milhares de alunos universitários é suficiente para que a praxe seja proibida? Obviamente que não.

Discutir a praxe é fundamental. Mas mais fundamental ainda é garantir que a discussão é justa e imparcial. E todos sabemos o quão parcial tem sido a comunicação social em Portugal a respeito da praxe. Não falem do que não sabem, a sério. Os alunos universitários agradecem.

Termino com duas notas finais. Primeiro: a praxe pode ser positiva mas também pode ser negativa. Depende de todos os envolvidos torna-la em algo memorável e não numa tragédia. Usem a praxe para o que serve melhor: integrar os novos alunos e ajudar a formar melhores alunos e seres humanos. Parte do que sou hoje devo-o à praxe. Aprendi muito com a praxe (tanto enquanto caloiro como enquanto trajado). Fiz amigos para a vida e coleccionei momentos que nunca esquecerei. E isso não tem preço. Segundo: nada tenho contra o livro acima mencionado, contra os autores ou contra quem é anti-praxe. Não partilhamos das mesmas opiniões e convicções, mas isso faz parte do quotidiano de uma democracia. Apenas peço que me leiam/oiçam e reflictam sobre quem tem mais razão: eu ou quem é anti-praxe.

Boa semana.
Boas leituras.