“Praxes” vs. Tradição: a minha opinião – João Cerveira

Pensei bastante antes de (voltar a) escrever sobre este assunto. É um assunto polémico, sensível e cada qual terá a sua opinião sobre o assunto. Também por isso, antes de comentarem, pensem que esta é a minha opinião e respeitem-na, tal como eu respeito a dos outros, concorde ou não com ela.

A decisão final de escrever sobre o tema “Praxe” resultou de dois factores: primeiro, quem não passa pela vida académica não sabe o que é e a comunicação social nem sempre mostra (ou mostrou) a verdade mas sim aquilo que queriam mostrar, eventualmente para captar mais audiência e leitores;  há muita gente – também em resultado do primeiro factor – a comparar “Praxe” com coisas que não fazem parte dela e são actos criminosos ou, no mínimo, actos de um grupo de frustrados que, usando a “Praxe” como motivo, descarregam as suas frustrações (e, porque não dizer, estupidez) nos novatos.

Na verdade, quero vos falar da diferença que há, na minha opinião, entre as “praxes” e a “Praxe”, a original, de Coimbra. Não quer dizer que só a de Coimbra seja boa e/ou superior, mas ninguém duvida que é a original. E, para não ferir susceptibilidades, vou-me referir doravante à “Praxe” Coimbrã como tradição, de forma a que entendam a sua verdadeira dimensão.
A Tradição em Coimbra é regulada pelo seu respectivo código (disponível aqui), onde a maioria dos aspectos da praxe são referidos e detalhadamente regulados (em que situações podem existir, onde, em que períodos, etc), assim como as respectivas penas a quem viola os seus preceitos. Mas a Tradição de Coimbra não se esgota nele. Os tradicionais “padrinhos” e “madrinhas”, que devem orientar os seus afilhados durante todo o curso, não constam no Código e toda a gente os tem. O Leilão do Caloiro, leilão simbólico (sem dinheiro, o melhor argumento ganhava) feito no dia de apresentação dos novatos em pleno Jardim Botânico, que se fazia (espero que ainda se faça) entre os estudantes da Faculdade de Direito, não está no Código e era uma boa e divertida forma de nos conhecermos todos e dos caloiros conhecerem o Botânico logo no primeiro dia). Enfim, há muito que se faz que são práticas com dezenas de anos e que não estão no Código, mas todos fazem, porque é a Tradição, passada de boca em boca, dos padrinhos para os seus afilhados, ano após ano.
Em Coimbra, como já adiantado, o Código estabelece como é que o estudante, estando na Tradição (porque pode decidir, a qualquer momento, não estar), deve vestir o traje académico, como deve segurar a pasta académica, quem (recorde-se que, na Universidade de Coimbra, não há – deixem-me usar o termo aqui – praxe mista, pelo que homens são praxados por homens e mulheres são praxadas por mulheres), como, quando e onde podem ocorrer actividades com ela relacionadas. Mesmo que uma qualquer situação não esteja prevista no detalhado Código, há sempre a possibilidade de se recorrer ao Conselho de Veteranos, orgão máximo da “Praxe”, com sede na Associação Académica de Coimbra, para encontrar solução.

Mas – já o havia dito anteriormente – a Tradição Coimbrã não se esgota aqui. Por exemplo, a festa da recepção aos caloiros e imposição de insígnias da Tradição (o grelo, fitas e cartola), que em Coimbra se chama “Festa das Latas e Imposição de Insígnias”, também faz parte da tradição. Os caloiros desfilam com um fato criado pelo padrinho ou madrinha, como se de Carnaval de tratasse. O Código diz, expressamente, que os caloiros não podem ser pintados (artigo 79.º). Se assistirem ao cortejo, vêem que muitos acabam por, eles mesmos, se pintarem para completarem o “fato”.  Só assim é tolerado.  A Queima das Fitas, em todas as suas actividades (desportivas, culturais, as noites no parque, o cortejo e concurso do melhor carro, o acto da queimar a insígnia, o baile de gala, o “chá dançante”, etc), faz também parte da Tradição. O cortejo comemorativo do aniversário da “Tomada da Bastilha” (mais informação aqui) é outro exemplo. Os grupos académicos (tunas, grupos de fado, a Orquestra Típica e Rancho, Grupo de Cordas, Coros, a “Orxestra Pitagórica”, grupos de Teatro, etc) também estão afectos à Tradição académica.

Lembro-me de como fui abordado, enquanto caloiro e de como abordei, sozinho ou em grupo (tertúlia ou trupe) os novatos e caloiros. Fiquei de quatro uma ou duas vezes, comi sem talheres ou só com um dos talheres, em jantares que acabavam quase sempre com cantorias e risos (alegria de estar, acima de tudo, entre amigos, misturada algumas vezes com algum álcool, confesso). Lembro-me também como foi engraçado cantar uma música (de amor) com letra escrita pelo meu padrinho (e a letra dele era difícil de decifrar) em plena alta da cidade, com as calças em baixo para se ver os boxers brancos com corações vermelhos que ele me tinha arranjado (vestidos por cima da minha própria roupa interior, claro), para uma caloira (bem bonita por sinal) de uma amiga dele. Lembro-me de como os nossos caloiros chegaram a fazer “pega monstro” nas montras da cantina dos grelhados, de como adoravam fazer as declarações de amor às doutoras (pela quantidade de vezes que nos pediam para o fazer e pela quantidade de amigas que faziam com isso) e de como nos rimos com a atrapalhação de um caloiro a quem foi pedido que dissertasse sobre o problema do aquecimento global nas borboletas do Afeganistão. No final, depois das jantaradas e saídas, era tempo de voltarmos todos a casa, muitas vezes abraçados uns aos outros (muitas vezes em circuito pela cidade, para garantir que todos chegavam bem a casa).

A Tradição – ou a “Praxe” – quando bem executada, segundo as normas existentes e respeitando a tradição, só tem um objectivo: a integração. E é um orgulho para quem promove estes valores recordar com os antigos colegas, muitos deles nossos ex-caloiros, aqueles tempos com saudade, conscientes de que se tratavam apenas de brincadeiras, umas com mais piada que outras, para nos conhecermos, ganharmos confiança e entrarmos no enorme ambiente académico que só Coimbra tem.
Nenhuma actividade da “Praxe”, regulada ou não pelo código, está acima da Lei geral do país. E quem se declara anti-praxe só fica vedado às actividades “praxisticas” (ser praxado e praxar, etc, como seria de esperar, pois se não concordam, não faria sentido participarem nelas) e não a festas ou outras actividades académicas (como os grupos académicos culturais e desportivos).

Tendo lido isto (esta versão resumida de tudo o que envolve a tradição coimbrã), acham que tem alguma coisa a ver com os abusos que temos visto e lido na comunicação social? Nada. A confirmar o que se tem dito, tratam-se de actos criminosos, que deviam ser investigados e julgados como tal. Não são praxe. E quem usa a Praxe para os levar a cabo, deviam ser permanentemente banidos desta, para além de punidos criminalmente, sempre que justificável de acordo com a Lei.  Acabar com a praxe (de forma geral) porque alguns abusam não faz sentido. A iniciação no exército, pelo que se conhece, é bem pior que os relatos de abuso nas pseudo-praxes e nunca se ouviu ninguém dizer que se devia extinguir o exército. Ou, se preferirem, sempre que um restaurante ou outra qualquer unidade hoteleira é fechada pela ASAE por falta de condições, ninguém pensa em fechar todas as unidades hoteleiras daquele tipo no nosso país. Os responsáveis pela prevaricação são punidos e pronto, servindo assim de exemplo. Aqui também devia ser assim.

 

 

Crónica de João Cerveira

Diz que…