Prendia o choro e aguava o bom do amor

“Prendia o choro e aguava o bom do amoooor” terminava de cantar Cazuza, num tom de voz monocórdico que Elga escutou de pé e em silêncio como se fosse um hino. Em seguida, desligou o rádio de pilhas que tocava desde a hora do jantar na cozinha e foi-se deitar.

Tinha o cabelo desgrenhado e um ar cansado, de passar durante horas a ferro uma pilha de roupa que acomodou em cima da cama e depois, à medida que ia retirando, ganhava o formato de uma almofada, onde a certa altura teria gostado de encostar a cabeça, para servir de amparo ao pescoço e poder dormir um pouco. No fim, pôs-se a olhar para o tabuleiro onde arrumou todas as peças de roupa segundo uma determinada ordem, por tamanhos e cores, como se fosse mais importante as saias, cuecas e soutiens combinarem entre elas do que com a pessoa que ia usá-las.

Chamava-se Elga, como escrevem os alemães, sem a consoante muda no início porque o pai não viu utilidade em acrescentar-lhe no nome uma letra que depois não se lia. Tinha desde criança, duas maçãs no rosto que coravam como tomates e o hábito de trazer na pontada língua os temas de sucesso dos seus artistas favoritos. À sua maneira, cantava-os não exatamente como ouvia, mas nela coexistiam em perfeita harmonia a sua faceta de cançonetista com a dos compositores dos temas, que até achavam graça às alterações que ela lhes fazia no sentido de melhorar.

Usava cabelo liso que lhe caía a direito nos ombros, de onde se alongavam os braços com que tinha vontade de abraçar a vida ao redor. Era muito simpática e extrovertida e, para agrado dos rapazes que lhe catrapiscavam o olho, viam desafiar as leis da gravidade, um par de seios que presos a um decote ousado, formavam duas meias-luas que à vista desarmada até se podiam observar do espaço.

Aos vinte e dois anos completara um curso técnico de contabilidade com se lhe abriram as portas para ir trabalhar em full-time numa fábrica de moagem de cevada, onde para ao fim de doze meses ter subido da condição de estagiária a assistente do diretor financeiro, não bastava saber a respeito da cerveja a que a cevada dava origem, que estava proibida de bebê-la de estômago vazio quando saía para se divertir à noite com as amigas e ficava alegre até nem se ralar que o pai a repreendesse por entrar em casa perto da hora e que ele se levantava para entrar no hospital onde ao fim-de-semana ajudava na recolha do lixo.

Certa vez num baile de Carnaval, numa delas, mascarada de Zorro que andava a picá-la e, por causa do bigode postiço, deve ter confundido com António Banderas que no cinema foi um dos galãs que já interpretaram aquela personagem, pregou um valente beijo de língua na boca, que, diz quem viu, gostou e até aplaudiu, com mais empenho do que numa das cenas do filme em que o herói consegue escapar incólume aos seus perseguidores.

Nesse dia, Elga foi para casa pensar e às tantas ficou ansiosa por saber se da próxima vez em que beijasse um rapaz iria sentir-se tão satisfeita. No rescaldo de ter percebido que se sentia menos atraída por pessoas do sexo oposto, reagiu bem à mudança de paradigma na sua vida, com naturalidade como se há muito não fosse segredo para ninguém que gostava de meninas e só faltasse a si própria e às amigas terem descoberto que afinal também era atrevida.

Doravante, impôs a si própria mudar de estilo. Pediu conselho à mãe sobre se lhe ficaria bem cortar e pentear o cabelo à rapaz, começou a vestir as camisolas mais largueironas do irmão, alterou o modo de andar, com os pés tipo-pá apoiados nos calcanhares mas afastando qualquer semelhança com uma bailarina e passou a roubar do pai, cigarros dos maços de tabaco que ele espalhava pela casa, como se fosse para marcar território em relação à mãe, que jamais experimentou dar uma passa nem soprou o fumo pelas narinas, em primeiro lugar porque detestava o cheiro do fumo na sua roupa e, em segundo, para não lhe afetar o olfato e poder mais facilmente detetá-lo na dos filhos se algum dia na escola algum deles se atrevesse a fumar.

Surpreendeu-a um dia o irmão, de mão dada com a namorada à mesa enquanto almoçavam na cantina com colegas dela, que se morressem de inveja de alguém teria de ser da amiga por namorar com a irmã que do par era de longe a mais bonita.

Não correu para ir contar em casa aos pais, mas sentou-se a esperá-la à saída da escola e nem foi preciso ela escutá-lo em silêncio para saber que ele continuaria a referir-se-lhe como sendo a melhor irmã do mundo, de quem se não viessem a ser os seus filhos a ter orgulho, seriam os sobrinhos, que haveria de lhe dar quando encontrasse e casasse com uma rapariga tão bonita e meiga como ela.

FIM