Professora, tenho uma dúvida: posso copiar?

Estava bem à vista no colo da minha colega do lado, a resposta certa à pergunta do teste de Espanhol que me faltava terminar para poder ir para casa. Frequentar um curso intensivo deste idioma que me encantava, foi a forma que encontrei de saber que não era com uma escova que nuestros hermanos lavavam os dentes, porque esse era o nome que eles davam a uma vassoura, e que embarazada era como se sentia toda a espanhola que engravidasse, mesmo que fosse do marido ou do namorado de longa data e não tivesse absolutamente nada a esconder.

A estas palavras que em Castelhano designam coisas diferentes das nossas, chamamos nós de Falsos Amigos, que é a designação correta para as pessoas que não deixam saudades, mas ao fim de 3 meses de são convívio não me recordo de nenhum que assim tivesse ficado porque de todos os colegas de ambos os sexo guardei as melhores lembranças.

Era eu um fedelho de tenra idade quando aprendi que não se devia copiar nos testes. Ensinou-mo a minha mãe que já me repreendera por apontar, que era feio, e enfiar o dedo no nariz que era demasiado bonito para deformar. Tinha-me alertado para o risco de ser apanhado a copiar por alguém que soubesse menos do que eu, mas pensei que pior do que tirar uma má nota que refletisse uma escolha menos acertada de parceiro do lado, era ver a prova anulada às mãos de uma professora intransigente que não admitia recorrermos das suas decisões para uma instância superior como era o diretor da escola.

Nos dias de prova, valendo-se dessa máxima que diz que mais vale prevenir do que remediar, os professores reuniam-se previamente e escolhiam os que vinham para perto de nós, nas salas de aula, tomar conta sobretudo dos alunos que gostavam de copiar. Sentavam-nos pela ordem de chegada em lugares que não eram aqueles onde habitualmente ficávamos e antes de abrirmos a boca em protesto mandavam-nos calar. No final, proibiam-nos de falar nos corredores até estarmos à distância de não incomodarmos os colegas que ainda não tivessem dado por terminados os trabalhos mas enquanto ela decorria, mantinham-nos afastados. Para não cairmos em tentação com a colega que estivesse ao nosso lado estávamos proibidos de trocar olhares. Não podíamos ver-nos de frente para não nos distrairmos, nem de lado para cada um não ver o que o outro escrevia.

Montavam uma barreira entre nós que estando longe de ser intransponível, requeria alguma habilidade para ser transposta. Formavam com ela uma espécie cortina invisível e a segurá-la estavam dois professores de cada lado. Um diante da porta, que nos vigiava os movimentos como se fosse um autómato, e o outro ao fundo da sala a quem o primeiro obedecia como se este é que tivesse o comando que lhe controlava o movimento dos olhos, da boca, das mãos e dos braços. Repartiam atenções entre nós, numa operação de logística tao bem montada pelo diretor da escola que eu perguntava se estávamos ali para avaliarem os nossos conhecimentos ou para testarem a nossa honestidade.

Só quando, por descuido ou excesso de confiança, algum colega era visto a copiar, é que quer um quer outro abandonavam os seus lugares e vinham ver o que se passava. Nessa altura, de olhar em riste como uma espada infligiam ao faltoso um golpe no peito que o derrubava como a um castelo de cartas exposto ao vento, e a seguir, pondo os seus cérebros do tamanho de uma ervilha a funcionar, pensavam num castigo que o fizesse arrepender-se de ter usurpado as regras. Faziam-no passar horas de pé ou davam-lhe reguadas mas, a meu ver, a alguns dos meus colegas, o castigo não bastava para redimi-los de todos os pecados, pois tinham-nos em tão grande número e eram tão graves que não se livrariam deles nem que nem que morressem como mártires no cumprimento do dever.

Hoje em dia, vejo menos razões em alguém deixar copiar por si num teste do que da parte de quem tenta tirar uma boa nota à custa do copianço, mas nem sempre foi assim. Tempos houve em que para levar de vencida os colegas convencidos de que eram mais bonitos, deixava copiar as raparigas da turma, as mesmas que eu sabia que não era para mim que olhavam mas para a folha onde punha, em letras garrafais para terem maior alcance, a resposta às perguntas que elas não sabiam de uma maneira mais fácil de entender do que vinha nos livros.

Estava eu longe de saber que teria necessidade de imitá-las uns anos mais tarde, no auge do meu período de seca que foi como chamei ao interregno durante o qual repeti 2 vezes de ano no 9º. Andava tão desesperado, tentando pôr fim a essa extenuante travessia do deserto, que colocava diariamente em causa as minhas hipóteses de sobrevivência, que outro remédio não tive senão pôr de parte o orgulho e fazer umas cábulas para a prova de Matemática, não descartando a possibilidade de copiar pela minha colega do lado, por sinal tão bonita que, por si só, merecia uma espreitadela furtiva longe do olhar do namorado que era ciumento.

De resto, não fosse ele o melhor amigo do meu primo, que era surdo, e a este teria dito em primeiro lugar que nem sequer era esse o maior defeito do sujeito. É que em doses iguais, o fulano juntava à pequenez de caráter os maiores defeitos dos grandes tiranos: era prepotente e castrador da liberdade de expressão dos amigos, o que no caso da namorada dele podia ser grave pois só pelo desabafo de algum deles é que ela podia vir a saber que ele afinal a traía.

Mas voltando ao dia da prova, devo dizer que nesse dia acordei nervoso e passei a manhã a pensar em como faria para passar despercebido, tanto junto da professora que não devia desconfiar das cábulas que levava nas mangas, como dos colegas que não deviam suspeitar de ser a primeira vez que as fazia.

Comecei por pensar que era uma sorte que, havendo ainda tantos lugares vagos, a professora tivesse escolhido para ela se sentar o lugar ao lado do meu. Há algum tempo que a observava fora das aulas e achava-a muito bonita. Creio que estava apaixonado.

De ambos os lados, à frente e atrás, tínhamos mesas e carteiras cuidadosamente alinhadas a partir da fila defronte do quadro. Como tinha sido eu o primeiro a chegar pudera escolher aquele, mas já trocara de cadeira e nem eu sabia que ia ficar ali até vê-la aproximar-se de mim e perceber que não valia a pena andar a saltitar se era impossível conceber um lugar no mundo que fosse melhor do que aquele.

Em pouquíssimo tempo a lotação da sala, onde já mal cabia um alfinete esgotou-se e passou a haver lugar só para as minhas dúvidas. Acompanhavam-me desde que saí de casa e devia trazê-las estampadas no rosto como a um sinal de nascença, e tão entranhadas na pele que deviam vir comigo desde antes das férias grandes.

Mal a prova começou, o movimento de rotação dos ponteiros do relógio lembrou-me que o tempo para as respostas era limitado e, por isso, precisava de me apressar. Desde logo, a primeira equação que tive de resolver foi a de saber de quantos minutos dispunha para cada resposta.

Tentei não perder tanto tempo a preencher o cabeçalho e abreviei a leitura do enunciado da prova, de forma a não pensarem que tinha dificuldades de leitura ou de compreensão da linguagem, tão graves que não conseguiria resolvê-los até à prova de Português que era somente dali a 3 dias.

Reparei na minha colega do lado que estava calma. Talvez soubesse de antemão que a prova ia ser fácil para ela e não lhe custasse responder ao que era pedido, ou passado o choque inicial talvez tivesse compreendido que não fazia sentido continuar a sentir receio de mim visto eu não representar perigo algum para ela. Passava em revista tudo o que escrevera, como se tivesse orgulho no que fizera ainda antes de saber que nota teria.

Olhei demoradamente a folha de rascunho que tinha sobre a mesa à minha frente e ponderei usá-la para fazer um desenho. Sobre o rosto dela, que tinha o formato de uma pera, pintar-lhe-ia os olhos de negro para não destoarem do meu estado de espírito naquele momento, tal era a preocupação que sentia, mas do cabelo, que soltava um aroma a essências silvestres, faria um bouquet bastando amarrá-lo com um elástico como a um rabo-de-cavalo.

Impregnada do seu cheiro, não precisávamos de abrir portas nem janelas para sentir a sala invadida de uma lufada de ar fresco que me dava alento para viver. Estávamos na Primavera e eu subjugado pelo medo de ser apanhado em flagrante não copiei, mas mesmo assim tirei uma nota que me permitiu transitar de ano para o 10º.

Uns anos mais tarde, já na prova final de Espanhol voltei a ter necessidade de copiar mas na dúvida sobre o que fazer pus-me à procura, entre os meus atuais colegas, de semelhanças, que não encontrei, com os dessa época em que acabei por ser feliz. Verifiquei, com agrado, que volvidos tantos anos a professora era mais nova.

Decidi dessa vez copiar pela minha colega do lado que nem deu pelo meu interesse, e enquanto o fazia, voltei a sentir o cheiro das flores no ar. Mas não podia ser das portas e janelas estarem abertas, porque da rua o ar que entrava era frio e a chuva continuava a cair.