Quem é que não queria ser milionário?!

“Luzes! Câmara! Ação! “ Boa noite, sejam bem-vindos! Eu sou a Manuela e começa aqui mais uma sessão do concurso da RTP que não premeia a criatividade, nem a irreverência dos seus concorrentes, mas sim a assertividade e o jeito que cada um mais ou menos tenha para acertar à sorte na resposta certa às quinze perguntas que tenho para lhe fazer.

É assim mas por outras palavras que começa um concurso transmitido na televisão pública e que, se premiasse a imaginação de quem lá vai, no meu caso não teria dinheiro no saco que chegasse para pagar metade das coisas que eu gostaria de fazer se atingisse o patamar do primeiro prémio.

Na minha, que é fértil, dava, vestido de príncipe, uma volta ao mundo, que era agora um lugar onde imperava a paz, montado num cavalo alado que não me deixaria assentar os pés no chão. Depois, com o dinheiro que sobrasse, talvez comprasse uma sacola cheia de brinquedos que distribuiria pelas crianças dos sítios onde passasse, já que com um lugar no céu não precisava de me preocupar enquanto continuasse a praticar boas ações como esta.

A seguir a uma curta apresentação, durante a qual, rodeado pelo público e pelos operadores de imagem, demonstrei sentir-me tão à-vontade diante das câmaras como um peixe fora de água, tentei colocar-me no lugar da apresentadora, em cuja boca serpenteava um sorriso, que era o meu, em jeito de concordância com as respostas que eu ia dando às perguntas que formulava, vendo que, no seu olhar, pairava a minha incerteza de não saber durante quanto tempo iriamos permanecer à conversa antes de me mandar direitinho para casa.

Contudo, e antes que isso acontecesse, esperava vir a ter tempo suficiente para, olhando-lhe de frente no rosto, me lembrar talvez de tê-la conhecido no tempo em que ambos éramos jovens e coleguinhas de carteira no liceu, quando, sem que estivesse em causa deixarmos de ganhar um prémio chorudo em dinheiro por não respondermos corretamente às perguntas da professora, no máximo íamos para casa com uma repreensão na caderneta e uma advertência a vermelho no sentido de alertarmos os nossos pais para nos obrigarem a estudar se não quisessem ver-nos a chumbar de ano.

Ouvi com atenção o público rir-se na primeira oportunidade que tive, até fazermos uma pausa para intervalo, de contar uma anedota sobre como um português, concorrendo com um inglês, um francês e um espanhol, se desenvencilhava, sem sair do lugar, de uma situação de perigo em que num avião em chamas era preciso aliviar o peso dos passageiros que não contavam sequer com paraquedas para se salvar.

De seguida, senti o chão deslizar-me sob os calcanhares, como se alguém me puxasse o tapete para cair, quando, na dúvida sobre quem tinha sido o segundo rei português da primeira dinastia, fiquei engasgado, lamentando que em vez de uma pergunta do tema História não tivesse vindo à baila uma de Economia, uma vez que, mais fácil do que tentar adivinhar o nome àquela personagem, seria dizer o estado depauperado em que estariam as finanças do reino, após o seu antecessor ter passado tantos anos em guerra, por um lado com os castelhanos pelo reconhecimento da independência do território, a partir de um pequeno condado, e por outro contra os muçulmanos a quem pretendia expulsar definitivamente da Península Ibérica, precisamente com a ajuda dos reis que andava a combater.

Admito que em casa não me preparei convenientemente para um concurso de perguntas de cultura geral que nunca foram a minha especialidade, mas as regras eram aquelas e o programa objetivava responder sucessivamente bem a todas as questões divididas por quatro patamares com um prémio mínimo garantido até chegar ao derradeiro que era de 100 mil euros!

Para ajudar a alcançar esta marca, além de numa das respostas poder contar com o auxílio do público, cada concorrente que se sentava diante da apresentadora que estava numa pose que o desafiava a puxar pela cabeça, podia ainda telefonar a uma pessoa amiga e solicitar ajuda ou mandar eliminar duas das resposta erradas que o computador dava, igualando deste modo às possibilidades que tinha de vir a responder com êxito, as probabilidades de se enganar e ser mandado para casa mais cedo do que, tanto ele como as pessoas que o apoiavam, certamente gostariam.

Usei as minhas quando julguei conveniente. Da primeira, fiz uso para deslindar o significado oculto de um provérbio antiquíssimo que falava de figos comidos à chuva em setembro que por causa do mau tempo viu estragarem-se os que ficaram na árvore à espera de melhores dias.

A prova inicial do dedo rápido correra-me tão bem que, antes da quinta pergunta, não me tinha apercebido de que passara a dispor de tempo para pensar, pelo que devia acalmar-me e ser menos lesto a responder, não fosse precipitar-me e deitar tudo a perder.

Ali sentado à conversa, discorri sobre que sentido faria, para quem em casa nos estava a ouvir naquele momento, revelar a uma pessoa que nunca antes vira ao vivo, aspetos essenciais da minha vida que revelavam as dificuldades por que passara até chegar ali, mas às quais, mesmo que eu enriquecesse naquela noite, alguém provavelmente só daria valor após a minha morte.

Às tantas, estava com dificuldade em concentrar-me por causa de uma luzinha vermelha intermitente, que partia de uma das câmaras, acendendo e apagando ao ritmo da minha perna a tremer, como se fizesse sinal a uma colocada nas minhas costas, que lhe respondia com um chiar de rodas que bem podiam ser as da minha cadeira às voltas com o meu peso exagerado.

Contei à apresentadora o que fazia, o que via e o que gostava que me vissem fazer. Detestava o meu emprego mal pago de Office boy numa empresa de reciclagem de papel, onde os chefes nunca chamavam os bois pelos nomes para que os seus subordinados não sentissem vergonha do que as pessoas suas conhecidas, cá fora, pudessem pensar que andavam lá dentro a fazer.

Aos poucos, e à medida que o tempo passava, começava finalmente a sentir-me confortável naquela cadeira alta e, sobretudo, na pele da personagem que interpretava um papel de sabichão para quem estava a ver. Pensei então seriamente em não desistir fosse qual fosse o montante amealhado, nem que somasse já o suficiente para encetar uma viagem que me fizesse esquecer as dificuldades que estava há algum tempo a sentir.

De resto, o meu sonho era viajar com o dinheiro do prémio, percorrer através dos caminhos da diáspora lusitana, os lugares no mundo onde ainda se fala o Português e onde, da chegada dos colonizadores portugueses, ainda hoje falam os nativos desses lugares na sua língua de origem.

Já passava das 22 horas quando, soando como se fosse um falso trompete, a buzina de um camião em fuga soou aos meus ouvidos anunciando o final das gravações. Despedi-me, até ao dia seguinte, da simpática apresentadora que tinha um ar exausto, que não podia dever-se só a que me tivesse achado um concorrente chato, e prometi voltar com a mesma boa-disposição.