Querida casa, deixei de ser tua escrava

Querida casa, hoje foi o fim, deixei de ser tua escrava. Depois de mais de quinze anos juntas a partilhar pó, esfregonas e líquidos desinfectantes, eu vou-te deixar entregue à bicharada, não propriamente nesse sentido claro. Perdi a conta às vezes que chorei agarrada ao cabo da esfregona, enquanto o cansaço se apoderava de mim, perdi a conta às vezes que esfreguei o bidé na casa-de-banho, limpei o pó às cómodas e ajeitei as molduras das fotografias, só porque ia receber visitas em casa, perdi a conta às vezes que deixei de ler um livro, ir tomar um café ou simplesmente dançar, porque estavas à minha espera cheia de lixo para eu limpar. Vai à merda, tu e as pessoas que me ensinaram que uma mulher tem que ser boa dona de casa, o tanas é que tem. Afinal o que é uma boa dona de casa? Alguém com bom senso pode me explicar? É ter a casa sempre limpa e arrumada, imaculada se possível? A cheirar a rosas  perfumadas na entrada e a flor de jasmim nos quartos? É ter a casa-de-banho impecavelmente asseada com lixívia? Cozinha sempre arrumada com a caixinha xpto para os chás e os potes com o arroz e a farinha? Os vidros a brilhar e as camas sempre feitas? Então eu sou uma porca, uma valente badalhoca! Se a minha casa for assim como descrevi, então onde raio eu vivo?

Não sou mais tua escrava, acabou-se. Eu quero um lar, não uma casa sem vida. Um lar é o final do arco-íris onde adoramos chegar depois de um dia exaustivo de trabalho, é o local magico onde tudo acontece, tanto podes discutir e bater com as portas como podes estar no tapete da sala a fazer amor exaustivamente , é o único local onde ninguém nos vê nem ouve. Lar é ter os brinquedos dos teus filhos espalhados pelo quarto e pela sala, de tal forma que nem te consegues mover, é ter a roupa amarrotada nas costas das cadeiras, lar é ter peúgas trocadas nas gavetas, é ter os lençóis húmidos e lingerie no fundo da cama, debaixo dos cobertores, depois de uma noite de puro gozo, lar é ter a marca do copo de leite em cima da mesinha-de-cabeceira, é montar uma cama com cobertores no chão da sala para assistir a um filme em família, é ter o cão e o gato a brincar pela casa e a louça suja empilhada na banca, lar é olhares à tua volta e rires desalmadamente com a confusão. A casa não cai, nem vai sair do sitio, infelizmente ninguém vem a minha casa arrumar e limpar por mim, portanto a faxina pode esperar, os vidros, a louça, as camas, mas o filme não, nem o café com as amigas, nem a brincadeira com os filhos, nem o livro que queremos ler e a dança que queremos dançar.

Nem as series de donas de casa desesperadas, nem os livros da treta que dão dicas de organização e planeamento do dia-a-dia, nem umas vitaminas ou anti depressivos receitados pelo medico vão ajudar. Acabou-se querida casa, não sou mais tua escrava. Podem vir as mães, os pais, os tios e os avós, podem vir os vizinhos, os amigos e os inimigos, até pode vir o Presidente dos Estados Unidos, não quero saber a vossa opinião sobre a minha casa nem sobre o estado caótico em que se encontra na maior parte das vezes. Não quero palpites, nem graçolas, nem comparações porque a irmã tem a casa mais arrumada que a minha. Ser boa dona de casa não aumenta o meu currículo profissional nem social, quando muito aumenta as minhas olheiras e a minha impaciência. Não sou boa dona de casa, mandei a minha casa à merda, mas não faz mal, porque eu não quero uma casa, gosto mais de ter um lar.

” O importante não é a casa onde moramos, mas onde, em nós, a casa mora.”

Mia Couto