A rainha vai nua

Descobri numa fotografia antiga, vestida como veio ao mundo, a minha mulher numa praia de nudismo, rodeada de rapazes e raparigas colegas da Faculdade do tempo em que se eu a tivesse conhecido, despida de preconceitos, mais perto estaria de concluir que ela era a minha alma gémea do que quando critica com altivez as minhas amigas que se vestem de uma maneira que, a seu ver, praticamente lhes deixa o corpo à mostra.

Folheava eu um álbum de retratos de capa dura, daqueles em que películas fininhas como as folhas depapel vegetal separam as grossas folhas que incorporam dezenas de imagens coladas dos dois lados e que pelas minhas contas valem mais do que as dezenas de milhares de palavras que eu pudesse dizer a seu respeito.

Refastelado no sofá da sala, encontrava-me sozinho em casa aproveitando uma tarde livre para rever fotografias das primeiras férias que passámos na companhia um do outro, logo após termos casado, numa terriola tão longe da praia quanto possível para evitar a alteração de pigmentação da pele que alegadamente lhe causava o sol quando a dela, que era mais sensível nas costas e nos ombros, ficava durante muito tempo exposta à radiação ultravioleta.

No meio de outras dessa época, apareceu-me a fotografia dela nua, de que não me lembrava tão bem como daquelas dos primeiros dias que passámos juntos, confesso, e por isso foi nessas que retive a minha atenção. Numa delas, com um ar engraçado, ali estava eu como me vestia à época: o tempo quase todo de calções abaixo do joelho, que faziam de mim uma espécie de anão da cintura para baixo. Noutra, ao meu lado, ela de vestido de alças cingido à cintura com a leveza de um véu, que não surpreendentemente sobre si chamava ainda mais a atenção das outras pessoas, sobretudo os homens, do que eu naquela figura ridícula.

Para parecer mais velho, usava por essa altura um bigode fininho da espessura de uma raiz de cabelo que era como se tivesse nascido por engano noutro lugar, ao passo que ela tinha uma franja redonda como uma meia-lua, que permanecia visível no céu durante o dia a lembrar a influência que o astro tinha em nós.

Talvez tenha sido sob a sua influência que nos conhecêramos quase por acaso. Aconteceu durante o mais curto período de umas férias que eu costumava repartir ao longo do ano. Estava a trabalhar há pouco tempo como estagiário num escritório de advogados e segundo o meu velho hábito de tentar prolongar o prazer das coisas de que mais gostava, tirava sempre uns dias no Carnaval; outro pelos meus anos em março; depois uma semaninha na Páscoa; outra em junho e antes mesmo de o Verão terminar já só me restava a possibilidade de fazer uma “ponte” ou duas que reservava para os feriados de dezembro. Estava assim lançado o mote para iniciar a festejar um mês que terminava com comemorações de passagem de ano mas durante o qual a celebração maior era sem dúvida a festa da família, ou seja, o Natal.

Depois de uma curta conversa acertámos os detalhes e lá estava eu ao fim do dia, no momento certo à hora indicada por ela para tomarmos um café num barzinho que gostávamos de frequentar.

Ela era jovem e bonita, Assistente Operacional de 1ª Categoria num consultório de medicina dentária, o mesmo é dizer que era Rececionista, e a meu especial pedido, como foi quando necessitei de ser atendido com urgência por causa de uma dor no dente do sizo que temi que alastrasse como uma bactéria maligna às partes sãs da restante boca, nariz e garganta, em troca de um bonito ramo de flores acedia à minha vontade e cuidava de retirar o meu nome da cauda da lista de espera colocando-o à frente dos pacientes que aguardavam há mais tempo do que eu por uma consulta.

Por causa de uma chuvinha que haveria de tornar-se persistente durante a noite, entrámos às pressas num café denominado “A Gruta”, no interior do qual umas obras recentes haviam alargado o espaço da antiquíssima taberna da qual só restava, além do nome, a tradição de servir pratos económicos, ancestral como o hábito dos portugueses comerem fora de casa e tão antiga que devia remontar ao tempo em que nas primitivas escavações subterrâneas ao ar livre que inspiraram o seu nome viviam os primeiros australopitecos para se protegerem do frio e da ferocidade dos animais selvagens que viviam nessa zona.

Encontrávamo-nos em meados dos anos 90, mas no início de um ciclo que dura até hoje por via do nosso casamento que teve lugar mais tarde. Vivia-se uma época efervescente e de grande entusiasmo. Porém, os mais novos, ainda mais rebeldes do que o foram os seus pais recém-saídos da revolução dos cravos, encaravam o futuro com um otimismo moderado pelo pessimismo dos mais velhos, como se estes antevissem, recorrendo a uma arte milenar, as dificuldades com que uns e outros viriam na segunda década do século seguinte a confrontar-se, isto é, na atualidade.

Com o café, bebi, para empurrar o pastel de nata, um copo de água dos grandes. Na palma da minha mão redonda, o pequeno bolo frágil de massa folhada era minúsculo mas de tal forma me encheu a boca ao tentar engoli-lo que pelo pouco espaço que sobrou das migalhas não couberam as palavras com que vinha de casa preparado para seduzi-la.

Mudo, quedei-me pasmado a olhar para ela, talvez tentando prolongar o momento que pretendia fixar para lá da retina. De pé, enquanto esperávamos que um empregado nos arranjasse mesa num recanto da sala, olhava-a maravilhado como se esperasse vê-la resolver-me todos os problemas, dos quais, embora não fosse o mais grave, este de nunca nas situações de aperto achar as palavras certas para falar em público era o que mais importava resolver em primeiro lugar.

Queria dizer-lhe que achava deslumbrante o ar de vedeta que exibia como se saltasse de um cartaz para o meu colo e que não podia viver sem ela; que lhe assentava à laia de luva o vestido de alças igual a outro que viria a registar em formato 15 por 20 numa foto tirada numa viagem a Elvas; que a melhor maneira de ela superar o constrangimento que mal conseguia disfarçar num sorriso era voltar a aceitar o meu convite, mas desta vez para jantarmos fora, na esperança de que as coisas viessem a correr mais de feição para o meu lado.

Encantado, em tão pouco tempo como demorei a perceber que ela a mulher da minha vida e que só por uma circunstância do outro mundo é que estávamos juntos, começámos a namorar. E dali até casarmos demorou menos tempo do que ela a perceber depois, algo desiludida, que estar casada comigo não era afinal nada do outro mundo.

Fomos viver para uma casa modesta, num 4º andar com vista nas traseiras para uma praceta onde os carros estacionavam em fila indiana tão perto uns dos outros que visto daquela altura dava a sensação de estarem envolvidos num grande choque em cadeia mas sem chapa amolgada. A casa era um pequeno cubículo de três assoalhadas que cabiam em meia kitchet das que víamos nas séries americanas da televisão. Apesar de ali estarmos há pouquíssimo tempo, vivíamos felizes, ainda sem filhos, num pequeno bairro onde nos sentíamos tão plenamente integrados como uma árvore na floresta, do qual julgávamos já fazer parte desde os primeiros prédios que foram sendo construídos ao longo dos anos.

Éramos três: eu, ela e uma gata siamesa gorda de pelo listado pela parte da mãe e bigodes pontiagudos da parte do pai, mas de origem persa, de acordo com a informação da parte do dono da loja de animais onde a compráramos. De resto, nunca desde que conheci a minha mulher percebi nela algo que me desagradasse tanto como a paixão exacerbada que nutria pelos animais de estimação, e nunca dei a menor importância ao facto de ter aparecido despida numa fotografia tirada há muitos anos, porque nunca teve o hábito inconveniente de se despir na frente de ninguém.

Comigo, jamais gostou de se despir em público, e diante de estranhos, na praia, constrangia-se ou encolhia-se como se estivesse com frio, se detetava algum traço de ciúmes da minha parte.

Às vezes, era como se por causa da minha ciumeira doentia, como lhe chamava, a nuvem que doravante pairava fosse a que um minutinho antes de aparecer ameaçara mandar mais cedo para casa os veraneantes aborrecidos pelo facto de o sol demorar tanto tempo a surgir lá no céu que os fazia terem vontade de partir e só aparecerem lá para o final da semana seguinte.

Ainda hoje, como naquela foto, ela é magra e a pele dela castanha ao sol reluz como uma candeia que vai à frente e alumia duas vezes. Embora seja de baixa estatura, quase duplica o tamanho do meu ego observá-la empoleirando-se em mim, pondo-se em bicos de pés ao alcance de um beijo a que só chega quem desfruta de um grandíssimo amor.

Hei-de lembrá-la, daqui a uns anos, nessa foto em que aparece nua, como sendo a primeira em que apareço sem lá estar, como algum curioso que não se tivesse deixado ver e tivesse ficado à espreita por detrás de uma barraquinha de praia para ninguém desconfiar que lhe causava tanto prazer assistir a tão belo espetáculo.

O mesmo espetáculo a que, quem me conhece acharia que eu tinha assistido, se para negar o que era para eles evidente, eu não arranjasse melhor desculpa para negar ter lá estado do que dizer que estivera distraído ou simplesmente a olhar para o lado.

FIM