Que raio de memória!

Pedaços de histórias, fragmentos de glórias, porções de momentos e instantaneidades de sofrimentos. Somos tudo e não temos nada; tememos tudo por não sermos nada ou não temos nada por não sermos tudo? São estas as fragilidades de um ser racionalmente superior, psicologicamente instável, insaciavelmente insatisfeito. Conseguimos ir à lua, a marte e toda e qualquer partícula ou amostra disso que seja desconhecida despoleta rapidamente um sentimento de impotência e de falha, somos formatados para sabermos tudo, podermos tudo e inventarmos tudo, testes, minúcias, perícias e todos os dias surgem novos engenhos que, sinceramente, só me fazem pensar que alguém sonha de noite e conta de dia; soubemos evoluir cientificamente para patamares que nem os filmes de ficção científica com duas décadas de estreia imaginaram, detemos um conhecimento colossal e, ao mesmo tempo, absurdo de técnicas robóticas e tecnológicas e atingimos uma supremacia evolutiva quase utópica. E tudo isto é escasso, insuficiente e diminuto para uma espécie de animais racionais que, veem nisso, um poder brutal cuja liberdade é ilusória, cuja efemeridade é garantida e todos dias, todos nós nos esquecemos disso. Somos aquilo que de mais frágil conheço, um lusco-fusco e puf, tudo se foi e não há cientista, expert, doutorado e idiota (no sentido mais literal) que nos valha.

Parece que agarrei no computador e simplesmente comecei a debitar palavras decoradas numa qualquer noite de insónias cujo único livro presente no meu quarto era um dicionário azul e laranja da Porto Editora – só que não. Dei por mim com medo, apenas. Medo de ser humana, de ser e de estar incondicionalmente condicionada por vicissitudes que me ultrapassam. Apercebo-me que nascemos com a nossa sina nas estrelas, na palma da nossa mão, na cor dos nossos olhos e que a nossa rota não pode ser alterada. Escapa-nos, escorrega-nos por entre os dedos e todos os dias fazemos malabarismos que nos põem à prova; crescemos e vivemos, cruzamo-nos com milhares de pessoas. Algumas deixam um pouco delas e levam um pouco de nós, lugares que nos fazem sentir bem, momentos que queremos que não acabem e que podiam parar todos os relógios mundiais. Mas quem foi o idiota que inventou a pressa, o tempo, a correria e a fugacidade de tudo o que é a nossa vida? Parem de inventar mais coisas! Parem só. No fim é muito pouco aquilo que resta. Tudo vai e tudo volta, há um ponto de retorno em cada coisa que nos pertence, um efeito boomerang que de vez em quando, inesperadamente, nos bate à porta de casa e o que fizemos nós? Nada. Inertes, como a amiga do Ronaldo no BES, está-nos inerente essa indolência; estamos embrulhados numa máquina mundial gigante que muda, renova e se altera a seu bel-prazer, arrasta-nos e nós deixamo-nos ir. Deixamos tudo para trás e lá vamos nós começar de novo.

Tantos atalhos, atabalhoamentos e palavras escritas para explicar que tenho medo do esquecimento – não confundam com ter medo de ser esquecida. Não é isso. Tenho medo da memória que nos atraiçoa e fica mais débil a cada nascer do Sol e vibrar de lua; não sentem isso? Não notam que por mais que se esforcem para nunca se esquecer de alguma coisa, chega a um dia que essa lembrança está baça, ténue e tremida. Não quero que seja assim. Tiramos fotografias, usamos objetos, fazemos tatuagens para colmatarem essa falha – porque temos medo de nos esquecer. Já parei no tempo, foquei-me em momentos para decorar cada milímetro daquilo que estava a fazer parte de mim e hoje? Hoje não me recordo de pormenores que, outrora, tanto significaram e cujo significado se mantém, a única coisa que não mantém é a lembrança disso… Parece que engavetamos cada segundo marcante que vivemos e que o pó se vai apoderando disso e distorcendo essa vivência. Os sons ficam menos audíveis, as cores mais insípidas, as vozes menos reais, os corpos menos pormenorizados e as conversas mais resumidas recordadas através de sinónimos. E porquê? Eu não me quero esquecer. Mas isto somos nós e perceberiam quão assustador isto é se conhecessem alguém de 98 anos que, por vezes, nem se lembra quem são as pessoas que vê e com as quais convive diariamente.