Raspa, raspa que é bom raspar a raspadinha

Raspadinhas de todas as cores e feitos para quase todos os gostos” – era a promessa do que podia encontrar lá dentro quem lesse o aviso colado à porta e entrasse na pequena tabacaria do pequenino centro comercial que tenho à porta de casa, onde passei a gostar de ir espairecer desde que me encontro, há cerca de nove meses, desempregada.

A loja era na verdade um cubículo onde mal cabia um balcão, atrás do qual com extrema dificuldade se podia movimentar a gorda mulher que aí trabalhava, bastante simpática mas que era pelo notável volume dos seios que chamava a atenção da clientela, sobretudo dos homens, facto que a fazia sobrepor-se quer ao impacto das notícias a respeito das estrelas dos programas televisivos de sucesso, embora todas fossem menos conhecidas do que ela por aquelas paragens, dadas pelas revistas da chamada imprensa cor-de-rosa; quer às parangonas que ocupavam as capas dos jornais, que se queriam noticiar algo de novo devia ser a respeito de haver uma pessoa tão popular como ela, e só estavam expostos para satisfação de quem queria estar a par da atualidade no mundo mas não tinha dinheiro para comprá-los.

Tinha o cabelo comprido e liso, preso por ganchos de lado para deixar à mostra a testa onde frequentemente aparecia uma ruga que denotava preocupação por ver entrar muita gente de uma assentada na loja, e um notável buço, o qual se sobrepunha negativamente à boa impressão que causava inicialmente uma boca bem torneada de grossos e expressivos lábios.

Era dela a letra garrafal desenhada à mão, no cartaz à entrada, onde, se houvesse espaço, gostaria de ter desenhado também um par de sapatos altos que podiam acompanhar um vestido para sair à noite com o namorado, a fim de que não restassem dúvidas sobre onde gastaria a maior parte do dinheiro se um dia tivesse a sorte de vir a ser premiada, no seu dizer, com “alguma coisinha de jeito”.

Gostei dos que lhe vi no dia em a chamei e ela veio cá fora para espreitar na montra a esferográfica com o meu nome, que lhe apontava como se quisesse dar-lho a conhecer porque aquele e não outro me enchia de orgulho. Por serem parecidos com umas sandálias e terem um salto alto tanto à frente como atrás, talvez não supusessem que os pudesse usar as pessoas que habitualmente a viam da cintura para cima, como eu, numa pose formal e programada para sorrir-lhes mesmo que discordasse do que elas pensavam. Talvez pensassem, por verem-na despojada de maquilhagem, que nem sequer fosse vaidosa ou, na pior das hipóteses, que ganhava tão pouco nas mais de dez horas de trabalho diárias, que não podia dar-se ao luxo de desperdiçar dinheiro em coisas supérfluas.

Quem tinha alguma intimidade com ela, tratava-a convenientemente pelo nome: menina Mimi, que me soava tão inadequado numa mulher daquelas proporções como se a mim, que sou Vera, me chamassem Becas, embora não fosse por tratarem-na melhor que as pessoas esperavam ser mais bem atendidas ou contavam vir a ter mais sorte na escolha de uma raspadinha premiada, como se obtê-la derivasse diretamente de uma equação matemática em que a boa educação era um dos fatores.

Pela minha parte, que jamais tivera sorte ao jogo, fui beneficiada com uma elevada dose de sorte no amor. Amava-me até à exaustão, um rapaz filho de boas famílias, cheio de boas intenções em relação a mim e com quem haveria de casar, caso não viesse a revelar um arrependimento tardio por ter largado, por minha causa, a anterior namorada, opondo-se à vontade dos pais e contrariando a opinião da irmã de quem ela depois se tornou amiga íntima.

Lembro-me de tê-lo visto pela primeira vez à saída do centro comercial onde eu agora ia, e onde talvez tivesse ido comprar a correr uma raspadinha porque assim que me viu, confessou-mo mais tarde, teve logo a sensação de que tinha ganhado a sorte grande.

Vim a descobrir que em parábola era como às vezes ele falava. Vestia umas calças azuis de ganga, rotas no joelho, e um polo cinzento de manga comprida às riscas, coçado nos cotovelos que, há muito, teria substituído se isso fosse verdade.

Começámos a namorar e embora não fosse o meu primeiro namorado, aquele a quem me entreguei de corpo e alma pela primeira vez, com vontade de não repetir a experiência para não sair magoada, levei-o lá a casa para conhecer os meus pais.

Em verdade vos digo que este pode não ser tão bonito como alguns rapazes que eu conheço, mas, à beira dele, nunca mais de nenhum dos meus amigos voltei a pensar que podia vir a ser um bom pai para os meus filhos. No dia em que saímos pela primeira vez, a imagem que eu tinha deles alterou-se e nunca mais de nenhum tornei a pensar que se fosse mais inteligente valeria a pena aprofundarmos o conhecimento ou, por mais esbelto que me parecesse, valia a pena perder tempo a admirá-lo.

Um dia, no entanto, surpreendi-o de queixo caído no peito da vendedora de raspadinhas e então, a pretexto de que era para livrá-lo das outras que não tiravam os olhos dele, passei a preferir ir com ele tomar café num sítio mais calmo e, claro, afastado, deixando para lá voltar só quando um de nós pretendesse comprar uma cautela premiada da lotaria para, com o dinheiro do primeiro prémio, passarmos a ir tomá-lo ainda para mais longe, talvez ao país de origem do meu lote preferido que no caso era o Brasil, com passagem por S. Tomé.

Fascinava-me haver tantas raspadinhas disponíveis de praticamente todas as cores, das mais garridas às que pela sua simplicidade, como as de fundo preto, eu pensava que não podiam ser um bom augúrio para ninguém. E esta semana, para gáudio meu tinha surgido uma nova no mercado.

Era em tons de verde, da patriótica cor da esperança, e não merecedora de menos atenção nas minhas de mãos delicadas que seguravam nela com todo o carinho, do que o seria uma esmeralda entregue ao cuidado de um apreciador de joias que saberia dar-lhe o devido valor.

Ao vê-la pendurada num lugar de destaque entre as demais, o meu cérebro coitado não ofereceu resistência e resolvi investir dez dos vinte euros com que saíra de casa de manhã para ir arranjar o cabelo. Paguei-a, depois apalpei-a, cheirei-a e tomei-lhe o peso como se fosse uma pepita autêntica da pedra preciosa de que falava há pouco.

Agora, não pensava sequer em raspá-la para não vir a descobrir que não era premiada. Só queria saber o que iria vender a loja defronte da tabacaria que tinha fechado há dois dias para obras de remodelação. Estava morta de curiosidade para descobrir o que estava a coberto dos papéis com que cobriam a montra: páginas de jornais recentes onde, à mistura com manchetes espampanantes, sobressaíam as fotografias de políticos que algumas pessoas ao passar tinham vontade de cobrir … de impropérios.

Tinha visto recentemente a rondar uma senhora de telemóvel colado ao ouvido, e que em comparação não diferia grandemente da vendedora da tabacaria, porque era igualmente gordinha e aparentava gostar de mostrar o peito, num decote até ao umbigo que sugeria o começo breve de hostilidades se um dia a visse puxá-lo ainda mais para baixo na presença do meu namorado.

Oxalá não fossem raspadinhas! Não que me importasse de vê-las concorrer entre si, a esganarem-se por uma quota de mercado que não existe, porque a concorrência é saudável e favorece a clientela, mas não quero imaginar se da dessa nova loja viesse também a fazer parte o meu namorado.

Em comparação com ambas sou tão magra, que se ele em casa deixar de gostar do que tem, não sei como hei-de concorrer em pé de igualdade com elas, para junto de quem temo que ele possa ir. Chama-se a isto concorrência desleal exercida por parte de quem possui melhores atributos físicos e para impedi-la não inventaram ainda qualquer autoridade da concorrência a quem eu me possa queixar.

Guardei a raspadinha na carteira e retirei-a dali a uma semana, toda espalmada como se tivesse servido durante mais tempo de separador entre as páginas de um livro que eu há muito deixara de ler.

Dobrada ao meio, guardava no seu conteúdo um segredo que eu queria desvendar, uma combinação de símbolos que podiam representar um prémio pecuniário, talvez insuficiente para me tornar representante de uma marca italiana de sapatos em Portugal, mas o quanto bastasse para nas viagens a passeio que havia de fazer àquele país, os portugueses se orgulharem de ter-me a representá-los, por aparecer em todas as ocasiões sempre impecavelmente vestida e calçada.

Com uma moeda de vinte cêntimos, que para o efeito desejado tanto servia como uma de dois euros, presa entre o polegar e o indicador da minha mão mais ágil, pus-me a raspar vigorosamente a parte sombreada do cartão destinada a esse fim, como se pretendesse, no lugar dos símbolos que estava prestes a eliminar sem ver, colocar outros que fossem mais do meu agrado.

Raspei, raspei e tive a sorte de ver premiada a minha aposta. Em detrimento da perda dos dez euros, por conta do risco que corri, vi coroado o esforço e multiplicado o dinheiro investido por dois, que logo tornei a apostar na ânsia de ganhar para, juntamente com o cabelo, poder mandar retirar a cutícula das unhas e o buço, sem o qual não esperava que o meu namorado fugisse, lançando-se nos braços da empregada gordinha da tabacaria por quem chegou a demonstrar interesse no passado.

Não que o meu sobressaísse tanto, mas não tendo uma boca tão bem torneada como a dela, estava curiosa para saber se era por causa dessa penugem no lábio que as pessoas olhavam para mim ou por outro detalhe que até àquela altura me tivesse escapado.