Redes Sociais – Violação do Direito à Reserva da Intimidade Privada ou Rede de Espionagem Consentida?

Em sede de direitos de personalidade, esses, os preferidos dos civilistas, contam-se pelos dedos de uma mão os que realmente controlamos. O nome, também o pseudónimo para quem o prefere usar ou tem vergonha da exposição artística a título pessoal, num ato de defesa da ‘’alma criativa’’, qualquer que seja e de onde quer que venha, são talvez os únicos. Os outros, como se muitos mais restassem, já não são nossos, pelo menos só nossos. A imagem, nossa (será?), que gratuitamente dispomos e vendemos ou a Honra, que se nos restar já nem damos por ela ou dela não queremos saber (que também acontece), já fazem parte de um todo, social ou não, que não nos pede opinião, porque o servimos, caprichosamente, que nem roupinha de Barbie desenhada para um único modelo.

Em tempos que não consigo situar, cada um tomava conta de si. Podia-se esconder, embora não pudesse fugir. Aparecia às horas que queria, com quem queria, sem qualquer paparazzi metafórico a fazer lembrar James Stewart no Janela Indiscreta. Talvez tenha sido esse o momento, qual visão futurista de Hitchcock, em que começámos a procura da sabedoria – minto – conhecimento rasca da vida dos outros. Parece chocante. Todavia, ao contrário da máxima barroca de que não importa ser, basta apenas parecer, este caso de curiosidade pseudo-social não só parece, como é. Sem lugar para ‘’também’s’’.

Atualmente, fruto dessa arma de destruição maciça, viciante, intimidante e pavorosamente agridoce que é o fenómeno das redes sociais, dispensáveis se tornaram os binóculos ou a companhia de uma qualquer Grace Kelly em noite de insónia, para sabermos, pormenorizadamente, o que vai dentro das casas dos nossos vizinhos. O mundo de cada um, se é que o há, alcança então uma nova dimensão. A da partilha, mas a não cristã, a involuntária permissão para que de rompante se intrometam na desinteressante rotina que levamos.

Pragmatizando, vamos aos casos. Nomes como Facebook, Twitter ou Instagram entraram no nosso quotidiano para ficar, promovendo a prática de partilhar tudo o que se passa à nossa volta, connosco ou com os outros, tanto em nossa casa como em lugares públicos. Até aqui não vejo qualquer problema. É bom partilhar, qual inocência pré-adolescente. Olhar o mundo pelos olhos dos outros, mesmo que astigmatizados. A informação forma, modela, reposiciona a nossa visão das coisas. De todas. No fundo, dá-nos mais opinião. Tomamos contacto com o que não conhecemos, muitas vezes com o que conhecíamos e já tardávamos em recordar. É essa a maravilha das redes sociais e o milagre do desenvolvimento tecnológico.

Não obstante às vantagens das redes sociais, usando-as para partilhar informação corremos o risco de tomar também contacto com aquilo que não queremos saber e que não estamos preparados para saber. Este efeito de oversharing (partilha excessiva), tem ganho cada vez mais representatividade, principalmente numa das suas principais modalidades: a da ‘’informação pessoal (agente Eu) que não quero que se saiba, mas que é consecutivamente partilhada em rede’’. É este o perigo das redes sociais, a informação tratada sem consentimento, ou com conhecimento tácito, que é legítimo, sim, mas de um nível ético paleolítico.

Eis que estamos perante um assunto de complexidade acrescida. Afinal, somos nós, indivíduos, que por vontade própria acedemos a redes de partilha online, com diferentes propósitos, aceitando as condições de utilização, que ‘’podem ser alteradas a qualquer momento’’. Sabemos disto, porque já nos acostumámos à falta de transparência. Pactuamos com elas colocando a escrutínio as nossas fotografias, estados e estados de alma, ou de espírito, para quem não a tiver ou achar que não a tem. Ainda assim, há que escavar até à essência sensacionalista destes sites. Ao longo do nosso percurso (ou até mesmo vida paralela) numa rede social, vemos mutado o nosso conceito de privacidade, da mesma forma que usufruímos selvaticamente das mutações no conceito de privacidade dos outros, num movimento hermenêutico do que achamos poder ser a vida dos outros e do que os outros acham poder ser a nossa.

No entanto, importa referir, que esta curiosidade maligna por nós perpetrada sob a égide do dito popular ‘’a galinha da vizinha é melhor que a minha’’ conta com a conivência das próprias redes sociais. Passando rapidamente a exemplos, a nova funcionalidade do Facebook, que permite saber se um determinado utilizador se encontra ativo na rede através de dispositivos móveis ou imóveis, como também a de confirmar se uma mensagem foi vista, mesmo que não respondida, perpetua e cultiva um vício de perseguição, uma conflituosidade oferecida, à qual todos vamos beber, convidando os intervenientes a fazer mais, a cercar mais a informação. Em suma, nós, utilizadores deste tipo de plataformas, damos diariamente luz verde para a formação de uma virtual autoridade de comunicação, que deliberadamente nos lincha a intimidade privada, de forma ilegal, sem escrúpulos ou preocupações cívicas.

É certo que muito mais poderia ser falado, como o impacto desta violação na política externa, da qual são exemplos os mediáticos casos da Wikileaks e de Edward Snowden. Todavia, pela meticulosidade que estes casos apresentam per se, bem como pelo sentido de responsabilidade que comporta analisar esses temas específicos, resolvi não os explorar, reconhecendo, no entanto, a sua relevância como ex libris do impacto das redes sociais e sistemas de informação por rede no âmbito das mutações da reserva da intimidade privada, que nestes dois casos específicos, apresento em latissimo sensu, alargando-o à escala estadual ou até inter-estadual.

Por fim, revelando um certo conformismo que, confesso, é meu apanágio, é importante, sim, insistir na desmistificação destes comportamentos de um social já putrefacto, sem, no entanto, deixar de perceber o nosso papel individual na construção deste sistema de espionagem público, globalizado e consentido. Porque ele, infelizmente, é nosso.