Refrigerantes e Canções de Amor (Review)

Até há bem pouco tempo, o cinema português era sinónimo de drama e melancolia, ao ponto dos Gato Fedorento terem brincado com esse aspecto, introduzindo a figura do homem que retirava pessoas das respectivas salas por terem esboçado um sorriso, numa qualquer fita nacional. Se essa foi alguma vez a realidade, os últimos anos têm mostrado que conseguimos fazer comédia à séria e com inteligência e Refrigerantes e Canções de Amor é mais um passo numa nova era que tenta quebrar o estigma, sobre as produções que se fazem por cá.

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Título Original: Refrigerantes e Canções de Amor

Ano: 2016

Realizador: Luís Galvão Teles

Produção: João Fonseca, Gonçalo Galvão Teles, Luís Galvão Teles

Argumento: Nuno Markl

Actores: Ivo Canelas, João Tempera, Lúcia Moniz, Victória Guerra

Música: Filipe Raposo

Género: Comédia

Ficha Técnica Completa

Nos anos 70, Alejandro Jodorowsky queria fazer um filme que proporcionasse as mesmas sensações de LSD, sem que a audiência tivesse de facto de consumir o que quer que seja. Tantas décadas depois, e uma vez que Dune de Jodorowsky nunca ocorreu, chega-nos uma comédia portuguesa que e parafraseando o dinossauro cor-de-rosa do filme, é como tomar ácidos sem de facto ter de os consumir. E de facto, Refrigerantes é uma montanha russa de emoções que, na sua essência é uma comédia, mas que aborda temas sérios e suficiente para tocar no drama, tudo isto colado pela surrealidade característica de Nuno Markl, que assina um argumento que não podia estar mais perto do que esperaríamos do radialista, escritor e humorista que é. E claro, o que seria um bom argumento sem a realização, pela compreensão e atenção que dá às particularidades da escrita, e à maneira como caminha lado a lado com o texto, sendo surreal onde é preciso, e sério onde é necessário. É uma perfeita sinergia sobre o que é escrito por Markl e o que é dirigido por Luís Galvão Teles.

O filme conta a história de Lucas Mateus (Ivo Canelas), um músico à procura de um lugar no mundo desde que a banda que integrava se desagregou. Contratado por uma empresa de refrigerantes para compor músicas para anúncios, Mateus tem de se confrontar com o sucesso do seu antigo parceiro de banda (João Tempera), que não só segue uma carreira ascendente, como rouba o seu interesse romântico (Lúcia Moniz) nos primeiros minutos de filme. A crise de emoções leva-o a uma espiral de demência, que culmina num supermercado, onde se apaixonará por uma mulher vestida de dinossauro cor-de-rosa, cuja face nunca viu. Nos momentos de maior dúvida, Mateus é visitado por um Jorge Palma imaginário, sábio conselheiro nas horas de maior desespero.

Refrigerantes pode ter o seu grau de surrealidade mas, por detrás dessa máscara esconde situações e emoções reais, dissimuladas mesmo que por detrás de um qualquer fato de dinossauro cor-de-rosa. É possível que duas pessoas vejam o filme e analisem a fita de maneira completamente diferente, isto porque podemos afirmar que a fita é sobre a vida e não apenas por ser sobre amor, e este representar uma das forças mais importantes no universo, mas também porque guarda consigo emoções humanas que, por vezes, mexem com a pessoa que somos, como a desilusão e a inveja. É também um filme actual, por mostrar os males da novas tecnologias, mas também por legitimar o amor sem barreiras, mesmo quando alguém se esconde do mundo num disfarce.

A aparência leve da comédia não deve passar a imagem de que o filme é exclusivamente para rir, especialmente quando é lido nas entrelinhas. Delimita demasiado bem onde mexer com as emoções da audiência, quer para rir como para chorar. Há, no entanto, um problema de ritmo motivado pelas transições entre personagens, o que parece criar uma bifurcação entre duas histórias que se acabam por voltar a unir demasiado tarde na narrativa. Esse facto é facilmente ultrapassado e tudo começa a fazer sentido, dentro do que é possível num filme com dinossauros cor-de-rosa.

As oscilações entre comédia e seriedade são evidentes até na maneira como as cenas são iluminadas, com o rosa a assumir um papel fulcral em várias planos, quase como se estivéssemos de volta aos anos 80, para depois mudar para uma ambiência mais fria e de reflexão, especialmente na presença solitária de Jorge Palma, que aparece por vezes como um anjo da guarda, com frase filosóficas e alta carga intelectual. Se tivesse sido gravado nessa época, não poderia estar mais dentro de tom, o que revela as suas inspirações e também um pouco da sua possível intemporalidade, embora seja cedo para perceber em que patamar ficará na consciência do público português.

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O que também era provável, se fosse gravado nos anos 80, é que Jorge Palma poderia muito bem ser substituído por António Variações, até porque o grande problemas das personagens de Ivo Canelas e João Tempera é estarem além, na dificuldade de aceitar a sua realidade actual e de invejarem uma situação diferente à que se encontram, sem dar valor ao agora. Neste departamento, os actores são sublimes, representado de forma às vezes caricaturada, como um texto de comédia por vezes exige. A personagem de Lúcia Moniz parece ser a mais ancorada à realidade, e uma voz de bom-senso na espiral de loucura que o filme nos apresenta. Victória Guerra, uma das actrizes que neste momento está a dar os seus passos no estrangeiro, depara-se com um papel que a obriga a demonstrar emoções através de gestos e voz, conseguindo na perfeição ultrapassar as limitações do seu fato cor-de-rosa, ao ponto de nos identificarmos com a personagem de Canelas, e também de nos apaixonarmos sem saber quem está por detrás da máscara. 

Dos inúmeros cameos do filme ressaltam os actores, que embora sem o serem de profissão, dão o melhor de si. De louvar está a incrível prestação de Jorge Palma, que embora faça de si próprio, o que pode ser mais difícil do que parece, representa com toda a naturalidade requerida de uma das figuras mais icónicas da música portuguesa. Noutro registo igualmente surpreendente está Sérgio Godinho, representando uma espécie de Danny Trejo depois de um banho de cozido à portuguesa. É tão bom de presenciar todo o esforço destes músicos conceituados em dar ao público um lado de si que desconhecíamos, tentando ao máximo encontrar interpretações que rivalizem com os grandes.

Também a música consegue ser sublime e trabalhada, mesmo quando o seu objectivo é retratar bandas e artistas que não existem. Muito filmes optam por música básica, feita como pequenos adereços e despreocupação. Em Refrigerantes o contributo é do compositor  Filipe Raposo e das letras de Sérgio Godinho e Jorge Palma, que legitimam a qualidade da soundtrack, que mesmo depois da fita terminar se mantêm na memória. Exemplo é Sobe o Calor, com direito a video no canal de youtube de Sérgio Godinho. Fica no ouvido, confesso!

Refrigerantes é “refrescante” para o cinema português, tem os seus problemas de ritmo, mas é sem duvida uma experiência diferente. Só a escrita de Nuno Markl para trazer emoções tão reais a uma relação estranha entre um homem e uma “dinossaura” cor-de-rosa, com o seu grau de nonsense, gargalhadas e olhos encharcados. É uma comédia romântica, mas bem que podia ser um pedaço real na vida de alguém. Esperemos, no entanto, que a “carrinhologia” não se torne moda, pois é capaz de se tornar irritante para muita gente, especialmente pessoas do sexo feminino, que apenas querem fazer compras num qualquer supermercado do país.

Em última nota, é uma pena que as salas de cinema nacionais não apostem mais nas produções feitas por cá. Infelizmente, o público é também um factor preponderante e na semana de estreia, no cinema que frequentei, o filme foi confinado a uma sala pequena que ficou perto dos 20% de lugares preenchidos. Havia certamente uma concorrência de peso nas salas ao lado, mas Refrigerantes superou as minha expectativas! Apoiem o cinema português! Vão ver! Recomendo!

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 Volto para o próximo mês com mais cinema…